sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Sign out


- Ó Américo, o que será que aquela mulher estará ali a gesticular, hã? Parece que é connosco.

- Eu não vejo nada, passa-me os óculos que estão aí nessa mesa Ernesto. Ah sim, parece mesmo que nos quer dizer alguma coisa... o que foi, mulher? É muda?

- Sim, é muda, vê-se logo. Olha lá, essa senhora não é a muda que há uns anos foi parar ao telejornal da TVI?

- A muda da TVI? Espera...ah já sei, aquela mulher muito baixinha, sempre com a mala debaixo do braço, já sei já sei! Esteve um tempo na TVI a apresentar programas e notícias, é verdade. Olha, já tinha apagado isso da minha memória... vivemos num país tão triste triste, meu caro.

- Olha, parece que está a escrever alguma coisa naquele papel. Vai dar-nos o papel, vem aí.

- Não percebo nada do que quer dizer, minha senhora. Não percebo nada. Dê-me o papel para eu ler senão não chegamos lá. Ora bem, deixa por os óculos outra vez, “Última Hora”. Está aqui escrito última hora, Ernesto.

- A senhora muda só pode estar a querer dar-nos a última e derradeira notícia.

- Será?


- Fonseca, ó Fonseca, vem aqui por favor! Tu não tá achando isso daqui meio paradão? Um silêncio, não se ouve uma mosquinha...

- Era isso, Ricardina? Era isso que você tinha para me dizer? Que isso daí tá meio paradão? Tou voltando para o meu computador. Com a sua licença.

- Ó Fonseca tu é mesmo um banana, tu não percebe das coisas. Não tou ouvindo a minhokinha, não a sinto aqui já faz algum tempo. Tu não ouviu aquele professor falar? Aquele que apareceu aqui com um montão de folhas saindo da pasta?

- Tu foi na conversa do Santos-Lima? Tu tá variando, mulher, tou voltando para o escritório.


- Ana maruja, já ouviste o boato que anda por aí a correr? Parece que a minhokinha desapareceu..

- cala-te, tubarão, que não te posso ouvir.


- Espera aí a ver se eu percebi: ela matou-me assim do nada, fez de mim uma lenda crioula e agora desapareceu e deixa-me aqui a vaguear no espaço? Não posso ficar aqui, Santos-Lima.

- Pois venho precisamente agora de conversar com o arménio e ele está transtornado, considera esta atitude vergonhosa, o autor não pode simplesmente evadir-se, tem responsabilidades para com as suas personagens. O conde está furioso, vocifera vinganças e vulgaridades. Eu confesso que estou deveras preocupado, o que vai ser de nós?


- Chegou ao Voicemail de Adão Decente. Deixe mensagem por favor.

- Adão, Adão, atende, é o Swainsteiger. A Minhokinha desapareceu.


- Se a minhokinha desapareceu mesmo, como vamos voltar para Portugal, Tomé? Eu não quero ficar a minha vida toda em Roseto Degli Abruzzi...


- Olá, como estão todos? Eu sou o intérprete de linguagem gestual, venho a pedido da senhora dona Almerinda que vos quer transmitir o seguinte comunicado:


“Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,

Muda-se o ser, muda-se a confiança,

Todo o mundo é composto de mudança,

Tomando sempre novas qualidades.”


Luís de Camões fechando a cortina da minhokinha que, com estas palavras, encerra um ciclo de três anos e meio.

Aos amigos que sempre me seguiram um grande abraço, às personagens a certeza de que um dia encontrarão o seu lugar.


minhokinha

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

a verdadeira história de ana maruja: uma tragicomédia em três actos



"Ana aproveitava os carinhos do mundo
Os quatro elementos de tudo
Deitada diante do mar
Que apaixonado entregava as conchas mais belas
Tesouros de barcos e velas
Que o tempo não deixou voltar.” (Fernando Anitelli)

Acto Segundo: a (des)aprendizagem

Àquela hora da manhã, ainda nem seriam sete horas, o mar estendia-se plácido sobre a areia. Não corria a mínima brisa e podia respirar-se a frescura daquela aurora que seria igual a tantas outras se não fosse a primeira escolhida para as aulas de natação. Ana Maruja veio a pé e estacou lá em cima num rochedo contemplando as águas mansas de leves transparências. Avistou o Tubarão ao longe, junto das rochas, que se entretinha a chapinhar a barbatana caudal nas pequenas poças de água que ali se formavam e que, aos fins de semana, serviam de piscina a muitas crianças pequenas que ainda não se aventuravam a nadar pelo vasto mar. A jovem desceu as escadas que a conduziriam ao mar e anos mais tarde viria a relembrar-se daquela descida como a fronteira que, atravessada, a impossibilitaria de voltar atrás. Estaria preparada para ensinar o Tubarão a nadar? E mais importante, poderia ela confiar num tubarão? Foi-se aproximando dele com vagar, pois parecia distraído tartamudeando uma qualquer cantilena que, a princípio, Ana não conseguiu entender. Já muito perto do animal, quase a roçar o seu tronco, captou algo que ao seu ouvido lhe soou assim: um sentimentu sta ta subi na mi moda tripadera... lua ta labanta, sol ta sai, galu ta canta, papagaio ta... Ana Maruja, há quanto tempo estás aí?, indaga o canino brilhante todo apontado a ela. Humm, cheguei agorinha assim, respondeu a menina. Então? Começamos a aula ou não?

O Tubarão manifestava sérios problemas de confiança com o mar, paradoxalmente a sua casa. Assustavam-no as rochas que repousavam nas profundezas do oceano, chegou a confessar que tinha medo de que um dia todas elas se revoltassem e o perseguissem mar dentro, trazendo às claras os segredos mais bem escondidos que a sua grandeza misteriosa certamente encerrava. Ana Maruja riu-se de tanta parvoíce e não se deixava levar por grandes conversas, vamos lá, mais dez vezes em crawl para cada lado da baía. E o Tubarão obedecia. Ana ia sempre mais além, nadava com mais destreza e não se deixava perturbar pelas pedras ou pelas ondas ou fosse pelo que fosse. Era apenas Ana e o Mar.

As manhãs deram lugar aos dias, os dias às semanas e as semanas aos meses. Ana Maruja manteve o seu compromisso com o Tubarão, aparecendo sempre à hora combinada e pronta para nadar. Por mais duas ou três vezes, à chegada de mansinho, Ana ouvia aquela cantilena ritmada como se fosse uma reza. Dja kubri nha kurason di amor, nha boka di disejo, nha odju di iluson, nha menti di inspirason... mas não conseguia entender o que aquilo era, nem o motivo pelo qual o tubarão insistia naquelas palavras. Seria uma canção? Um poema? Algum ritual? Meu Deus, seria magia negra?

O Inverno trouxe consigo as manhãs frias e Ana começava a sentir o espírito mais dormente. Se alguém lhe tivesse perguntado, não saberia explicar exactamente o que se estava a passar consigo. Mas ninguém perguntou e assim esta espécie de anestesia foi passando despercebida até de si própria. Embora a jovem se sentisse mais mole (queira o leitor perdoar a bruteza do termo), continuava a comparecer no mar logo cedo pela manhã. Via progressos, o tubarão nadava cada vez melhor, arrojava-se ao mar, tentava até umas acrobacias. Tinha-se gradualmente habituado à presença muda das rochas e agora até escarnecia delas. Vou lá abaixo arrastar umas pedras e já volto, dizia ele entre pequenos mergulhos e em escancarada gargalhada. Cuidado, não percas o respeito pelo mar, avisava Ana, olha que quando acreditamos que o mar já nos pertence podemos ter uma surpresa. E não é das boas, ouviste? Tem cuidado! Então, Ana? Não me digas que tens medo dumas rochinhas... Não é medo, é respeito. Não quero abusar. Concordei que te ensinava a nadar, não a pavoneares-te por entre os perigos. Perigos? Quais perigos?

Ana sabia lá quais eram os perigos...sentia-os mas não os saberia nomear se alguém lhe pedisse. Mas ninguém pediu, então resolveu ignorar a sensação de desconforto que se ia insinuando no seu peito.

Recorda-se o leitor da terrível maldição que o deus Apolo lançou à bela Cassandra? Conseguirá imaginar o sofrimento agudo e a frustração da visionária ao ver que ninguém acreditava nas suas profecias? Uma vozinha no ouvido de Ana Maruja, qual serpente, sibilava algo indistinto, Ana não sabia o quê, nem onde, nem quando nem porquê. Só sabia que sim. Ridículo? Insano?
Tróia caiu por ninguém dar ouvidos a Cassandra e também Ana Maruja, qual abelha desprevenida, seria fatalmente apanhada na complexa teia de Tubarão Olhos de Mel.

A espera



A dor. A faca afiadíssima suspensa sob as nossas cabeças. A espera.
"Na saúde e na doença até que a morte nos separe."


sexta-feira, 13 de agosto de 2010


"Há três coisas fundamentais para se escrever: orgulho, paciência, solidão." António Lobo Antunes

"Quando falamos nas razões que nos levam a escrever, a posteriori, é sempre uma coisa meia inventada, porque as razões verdadeiras, no momento da escrita, são inexplicáveis." Maria Isabel Barreno

terça-feira, 10 de agosto de 2010

a verdadeira história de ana maruja: uma tragicomédia em três actos


“veio de manha molhar os pés na primeira onda
abriu os braços devagar... e se entregou ao vento
o sol veio avisar... que de noite ele seria a lua,
pra poder iluminar... ana, o céu e o mar.” (fernando anitelli)

"tenho saudades da ana maruja que foi para Portugal e não volta." (Tita)

Acto Primeiro: o pedido

Foi numa dessas tardes de sol tão quente em que a areia insiste em queimar as plantas dos pés que Ana Maruja foi interceptada por uma piscadela de olho. Olhou por cima do ombro a tentar ver a Giselle Bündchen atrás de si, mas não, nada disso. A piscadela orquestrada por Tubarão Olhos de Mel era mesmo para si. Ana Maruja corou e fez de conta que não era nada com ela. Continuou a percorrer o areal que a queimava sem um único ai, porte de deusa, olhar no horizonte lá para os lados do Brasil. Tubarão Olhos de Mel ficou ofendido, mas quem se julgava essa chavalinha? A Giselle Bündchen? Devia ser, tal era o seu ar de superioridade.
Na verdade, Ana Maruja tinha tido um caso tórrido com Horácio Barbatana Veloz e a coisa não tinha corrido bem. Horácio tinha a mania da perseguição e lentamente tinha insinuado a sua patologia enciumada e obsessiva. Ana Maruja tinha finalmente conseguido libertar-se desta relação doentia e o que ela mais queria era sol, mar e paz. Prosseguia a jovem areal fora, saracoteando a sua bolsinha cor de rosa um pouco acima da altura do joelho, quando Tubarão Olhos de Mel, num passe semelhante à magia de David Copperfield, cai à sua frente e barra-lhe descaradamente o passeio.
Deixa-me passar, pede a miúda com o queixo levantado. Para passares aqui terás de passar por mim, querida Ana Maruja, e agita as barbatanas em claro sinal de orgulho macho. Ana tentou contornar o tubarão mas ele era rápido e conseguia sempre bloquear-lhe a passagem. Olha, diz a menina fitando os olhos de mel bem no fundo, eu sou da paz, não quero chatices com ninguém. Diz-me lá o que queres de mim para eu poder ir à minha vida.
Desenrola-se então a terrível e trágica história do tubarão na primeira pessoa. A luz do sol baixa, dá lugar ao lusco-fusco, as primeiras luzes dos botes de pesca acendem-se e o farol, que parecia ter sido contratado especificamente para aquele efeito, ilumina Olhos de Mel como se este fosse o Sinatra em palco. Sou um triste tubarão, Ana Maruja, não te deixes enganar pelo meu aspecto lustroso e feroz. Estás a ver este canino contundente? É postiço. Tenho uma conta no dentista que nem sei como a vou pagar. Sou um desgraçado, ninguém gosta de mim, se quero vir apanhar um ar para perto da praia as pessoas desatam logo a correr, aos berros, vem a Polícia Marítima, o Greenpeace, fazem o diabo a quatro e ninguém consegue entender o que na verdade me traz aqui. Tenho de te contar o meu maior segredo e só espero que me possas ajudar. Não é por acaso que vim ter contigo aqui hoje, sabes? Tenho andado a vigiar-te, sei que vens aqui todos os dias, ou de manhã ou de tarde, e fico lá de longe a ver-te nadar. Nadas tão bem, Ana Maruja, e sabes nadar os quatro estilos... impressionante! Quando te vejo no mar penso logo numa grande amiga que tive há uns anos, a Sereia Suzete, que era uma autêntica bailarina de mar. Nadava horas a fio, deixava no mar o toque da sua leveza, era graciosa como uma pluma. Infelizmente já não está entre nós, teve um acidente, coitada...nem me quero lembrar disso. Tal como a Sereia Suzete, tu também és uma brilhante nadadora e o mais notável é que és humana, nunca conheci ninguém assim.
Obrigada Tubarão, respondeu a jovem com um sorriso ainda desconfiado. Gosto de nadar mas não sou assim tão boa. Prefiro pensar que quando estou dentro do mar me entrego completamente a ele e esta entrega é tão intensa que quase me transformo numa onda. Deve ser isso...
Tubarão Olhos de Mel subentende uma brecha na postura defensiva da menina e imediatamente a aproveita. Num segundo coloca-se estrategicamente de joelhos e pega-lhe na mão. Ana Maruja, dás-me a honra de seres a minha professora de natação? Quero muito aprender contigo. Para mim és a sereia mais bela deste mar. Por favor, por favor.
Ana Maruja é apanhada de surpresa. Consegue resistir a tudo menos a pedinchices e lágrimas à mistura. Aqueles olhos de mel e de cão abandonado estavam a fazer-lhe cócegas no coração. Coitado do tubarão. É para todos o animal mais feroz e nem nadar direito sabe. Que triste.

Então? - volta o tubarão a carregar o semblante desgraçado. Aceitas o meu pedido?


quarta-feira, 14 de julho de 2010


Aquele cheiro era igual ao do meu avô. Cheiro de blazer de fazenda antiga misturado com cigarros, um cheiro amarelado, macerado, das pontas dos dedos.

É um cheiro que quase não o chega a ser. É o cheiro da total ausência de uma gota de perfume, de um aroma, ausência de qualquer nuance contemporânea naquele corpo estranhamente tão jovem.

Deixei-me senti-lo, inspirei-o com a memória. E a sorrir daquele sorriso encabulado como quem coça a cabeça, meti a mudança e lentamente carreguei no acelerador.

Foto: larbatxia

sexta-feira, 9 de julho de 2010

Are you on crack? No, I'm on EDge



Ontem, na Casa das Artes, em Vila Nova de Famalicão, apresentou-se a Companhia de Dança da London Contemporary Dance School. São os novos e promissores talentos da dança europeia que trouxeram o aqui e o agora da velha capital. Flamejantes nos movimentos, ousados na abordagem do ritmo londrino, deram conta dos mais variados tipos sociais que fazem de Londres o mais interessante fenómeno de melting pot da sociedade europeia da actualidade : o flanêur, o executivo, o estudante, a emigrante, o sonhador, a dona de casa, o artista... estavam todos lá, na ponta dos pés das bailarinas, no contorcer harmonioso dos corpos, na luz e na sombra, na melodia...

"Every day I try so hard to know your mind and find out what's inside you. Time goes on and I don't know just where you are or how I'm going to find you. You can do whatever you please. The world's waiting to be seized. You can collect all the neglect or all the self-respect you need. And I know... and I know... and I know... We live but once but good things can be found around in spite of all the sorrow. If you see black you can't look back, you can't look front, you cannot face tomorrow. Some have it nice, fat and round, flash, paradise. They're very wise to their disguise, trying to revolutionize tomorrow. And I know... and I know... and I know... Your mind's guaranteed. It's all you'll ever need. So what do you want with me?" (Decomposition 1, EDge)

Mais informações em theplace

Fotos: Minhokinha

quinta-feira, 8 de julho de 2010

Velvet Vila





Esta é para a Gisela, num brinde de taça à nossa Vila.

A Vila é uma mulher madura, redonda nos seus pudores. Tem anca larga, um avental branco e sempre um tabuleiro de doces quentes acabados de sair do forno que é como que um prolongamento dos seus braços.
A Vila não se entrega a estranhos na primeira conversa, é recatada, prevenida, enfeita o seu brio numa longa trança que enrola na nuca e prende com um travessão.
A Vila é doce, tem aquele cheiro de maresia misturado com os velhos e nobres tempos. A juventude de hoje, eclética e barulhenta, toma-a de assalto sem pedir licença, mas a Vila não se incomoda, alarga ainda mais o seu sorriso de avó e a todos acarinha com tabuleiros de doces cada vez maiores e mais deliciosos.
Quem vem à Vila quer sempre voltar, porque aqui o sonho passeia-se connosco nas pedras das calçadas, baila nas luzes dos lampiões, mergulha nas ondas revoltadas deste mar e sai com cheiro a sargaço.
A Vila não é minha mas eu adoptei-a. Chego com um sorriso, aceito sentar-me na cadeira que sempre me oferece e por ali me fico. Tão bem, tão natural como se estivesse em casa.

Fotos: Vila do Conde, 7.07.2010, by Minhokinha

sábado, 26 de junho de 2010

O dito pelo não dito, os amigos, os imprevistos e os outros


Começo pelos amigos e rejeito os lugares-comuns: não são os que estão sempre lá, muitas das vezes encontram-se a milhares de quilómetros de distância no espaço e também no tempo; não são os que acenam assertivamente com ar complacente, num misto de empatia e marcada distância, porque esses podem estar mesmo à nossa frente e mesmo assim insistirem em não nos (re)conhecer; não são os que telefonam sempre que querem sair à noite. Esses são os outros. O verdadeiro amigo, pessoa única, eterna e intransmissível, possui na sua essência o fino e apurado instinto de nos resgatar no instante em que mergulhamos em profunda queda livre.

Os imprevistos normalmente aborrecem-nos. Há quem fique triste quando acontecem, não gostam de sentir que a rotina lhes escapa por entre os dedos. E há igualmente quem fique triste quando se apercebe que é o causador do imprevisto de alguém a quem quer bem. No momento em que acontecem a nossa primeira reacção é, normalmente, encará-los com um considerável grau de desconfiança. Afinal, retiram-nos do curso que pensávamos estar a seguir e que naturalmente acreditávamos ser o mais indicado. A primeira propriedade inerente ao imprevisto é o factor surpresa...tive um imprevisto, dizemos logo a correr, tive um imprevisto e não pude a) comparecer a horas à reunião de trabalho; b) encontrar um cliente; c) passar numa festa de amigos. Tanto faz. O imprevisto calhou-me, estou sob o seu efeito, a partir do momento em que se instala reina a anarquia. Eu deixo de ser eu na ordem que eu desenhei para mim. Aconteceu-me um imprevisto, não estão a ver? Pois aconteceu e ainda vão acontecer infinitamente mais. O poder do imprevisto rejuvenesce a cada momento que passa, oferece-nos uma nova possibilidade de visão, uma perspectiva-outra. Afinal, que mais provas buscamos da generosidade da Natureza?

O dito pelo não dito é curioso. Primeiro diz-se uma coisa, depois diz-se outra. Apresentamo-nos com a mesma cara quando o fazemos e esse pormenor por si só torna o dito pelo não dito numa coisa insuportável para quem o ouve. Sejamos honestos: o nosso peito enche-se de uma estranha convicção quer quando o condenamos quer quando o praticamos. O que levará as pessoas a contradizerem-se? Flutuantes estados de alma? Inata multiplicidade do ser humano? Volubilidade? Não sei... Os portões que encarceraram o eu durante séculos abriram-se em par... e todos fugiram de lá de dentro a correr.

Os outros são carracinhas que vão saltitando de dorso em dorso sedentas de sangue. A metáfora não é arbitrária, se pensarmos bem o modus operandi do outro e do bicho sugador são em tudo semelhantes: ou chegam não se sabe bem de onde ou são apresentados por outro companheiro, imaginemos a pulga, e com uma leveza graciosa instalam-se e começam a chupar o nosso sangue. Se ninguém reparar no continuado processo de sucção, são capazes de estar naquilo semanas e semanas e semanas a fio. O outro, tal como a carraça, gosta de escolher o preciso local onde o sangue galopa com um fervor vermelho-vivo, fareja os pontos mais sensíveis e empenha-se em sugar o mais que consegue, exponenciando assim a sua própria energia e debilitando a do hospedeiro. O hospedeiro nem se apercebe que está a ser literalmente, em sentido figurado e novamente literalmente, comido pelo outro enquanto lhe oferece um luminoso sorriso de simpativa e jovialidade.

Foto: olhares.aeiou.pt