segunda-feira, 23 de agosto de 2010

a verdadeira história de ana maruja: uma tragicomédia em três actos



"Ana aproveitava os carinhos do mundo
Os quatro elementos de tudo
Deitada diante do mar
Que apaixonado entregava as conchas mais belas
Tesouros de barcos e velas
Que o tempo não deixou voltar.” (Fernando Anitelli)

Acto Segundo: a (des)aprendizagem

Àquela hora da manhã, ainda nem seriam sete horas, o mar estendia-se plácido sobre a areia. Não corria a mínima brisa e podia respirar-se a frescura daquela aurora que seria igual a tantas outras se não fosse a primeira escolhida para as aulas de natação. Ana Maruja veio a pé e estacou lá em cima num rochedo contemplando as águas mansas de leves transparências. Avistou o Tubarão ao longe, junto das rochas, que se entretinha a chapinhar a barbatana caudal nas pequenas poças de água que ali se formavam e que, aos fins de semana, serviam de piscina a muitas crianças pequenas que ainda não se aventuravam a nadar pelo vasto mar. A jovem desceu as escadas que a conduziriam ao mar e anos mais tarde viria a relembrar-se daquela descida como a fronteira que, atravessada, a impossibilitaria de voltar atrás. Estaria preparada para ensinar o Tubarão a nadar? E mais importante, poderia ela confiar num tubarão? Foi-se aproximando dele com vagar, pois parecia distraído tartamudeando uma qualquer cantilena que, a princípio, Ana não conseguiu entender. Já muito perto do animal, quase a roçar o seu tronco, captou algo que ao seu ouvido lhe soou assim: um sentimentu sta ta subi na mi moda tripadera... lua ta labanta, sol ta sai, galu ta canta, papagaio ta... Ana Maruja, há quanto tempo estás aí?, indaga o canino brilhante todo apontado a ela. Humm, cheguei agorinha assim, respondeu a menina. Então? Começamos a aula ou não?

O Tubarão manifestava sérios problemas de confiança com o mar, paradoxalmente a sua casa. Assustavam-no as rochas que repousavam nas profundezas do oceano, chegou a confessar que tinha medo de que um dia todas elas se revoltassem e o perseguissem mar dentro, trazendo às claras os segredos mais bem escondidos que a sua grandeza misteriosa certamente encerrava. Ana Maruja riu-se de tanta parvoíce e não se deixava levar por grandes conversas, vamos lá, mais dez vezes em crawl para cada lado da baía. E o Tubarão obedecia. Ana ia sempre mais além, nadava com mais destreza e não se deixava perturbar pelas pedras ou pelas ondas ou fosse pelo que fosse. Era apenas Ana e o Mar.

As manhãs deram lugar aos dias, os dias às semanas e as semanas aos meses. Ana Maruja manteve o seu compromisso com o Tubarão, aparecendo sempre à hora combinada e pronta para nadar. Por mais duas ou três vezes, à chegada de mansinho, Ana ouvia aquela cantilena ritmada como se fosse uma reza. Dja kubri nha kurason di amor, nha boka di disejo, nha odju di iluson, nha menti di inspirason... mas não conseguia entender o que aquilo era, nem o motivo pelo qual o tubarão insistia naquelas palavras. Seria uma canção? Um poema? Algum ritual? Meu Deus, seria magia negra?

O Inverno trouxe consigo as manhãs frias e Ana começava a sentir o espírito mais dormente. Se alguém lhe tivesse perguntado, não saberia explicar exactamente o que se estava a passar consigo. Mas ninguém perguntou e assim esta espécie de anestesia foi passando despercebida até de si própria. Embora a jovem se sentisse mais mole (queira o leitor perdoar a bruteza do termo), continuava a comparecer no mar logo cedo pela manhã. Via progressos, o tubarão nadava cada vez melhor, arrojava-se ao mar, tentava até umas acrobacias. Tinha-se gradualmente habituado à presença muda das rochas e agora até escarnecia delas. Vou lá abaixo arrastar umas pedras e já volto, dizia ele entre pequenos mergulhos e em escancarada gargalhada. Cuidado, não percas o respeito pelo mar, avisava Ana, olha que quando acreditamos que o mar já nos pertence podemos ter uma surpresa. E não é das boas, ouviste? Tem cuidado! Então, Ana? Não me digas que tens medo dumas rochinhas... Não é medo, é respeito. Não quero abusar. Concordei que te ensinava a nadar, não a pavoneares-te por entre os perigos. Perigos? Quais perigos?

Ana sabia lá quais eram os perigos...sentia-os mas não os saberia nomear se alguém lhe pedisse. Mas ninguém pediu, então resolveu ignorar a sensação de desconforto que se ia insinuando no seu peito.

Recorda-se o leitor da terrível maldição que o deus Apolo lançou à bela Cassandra? Conseguirá imaginar o sofrimento agudo e a frustração da visionária ao ver que ninguém acreditava nas suas profecias? Uma vozinha no ouvido de Ana Maruja, qual serpente, sibilava algo indistinto, Ana não sabia o quê, nem onde, nem quando nem porquê. Só sabia que sim. Ridículo? Insano?
Tróia caiu por ninguém dar ouvidos a Cassandra e também Ana Maruja, qual abelha desprevenida, seria fatalmente apanhada na complexa teia de Tubarão Olhos de Mel.

2 comentários:

Anónimo disse...

quero o terceiro!!!!

Anónimo disse...

:) sou eu TIDI. adoro o q escreves. bjo