Dona Ricardina, mulher robusta e decotada, não era pessoa para aguentar ofensas calada e nem sequer com um sorriso amarelo. Quando confrontada com alguma animosidade, de imediato levava a mão direita à cintura, colocando a palma para fora em jeito de peixeira, arqueava as sobrancelhas qual Poirot desconfiado, abria bem os olhos sem pestanejar, levando o joelho à frente a compor o figurino e disparava incisiva e com voz de bagaço : “Escuta aqui, se você tem alguma coisa a falar pode falar logo enquanto estou bem aqui na sua frente!” Contrariá-la era uma tarefa habilidosa e só acessível a muito poucos humanos ainda vivos. O próprio Fonseca, seu marido enfezado, curvado e amarelo de cigarro tentava impor-se há mais de vinte anos sem qualquer resultado efectivo. Só houve uma vez, há muito tempo, logo depois da lua-de-mel num vilarejo qualquer para os lados de Belém do Pará, que Fonseca tentou dar o seu másculo grito de Ipiranga, ameaçando deixá-la grávida e só, por não mais poder aturar as suas mesquinhices neuróticas. Quis o destino que o seu grito não passasse dum rouco, mudo e débil miau imediatamente abafado pela verdade universal e colossal bradada daquele peito forte: “Você é que sabe! Homens é o que não falta e eu ainda sou um bom pedaço de mulher!” Com isto Fonseca sucumbiu. Tinha já um grande amor àquele feijãozinho que a esposa carregava no ventre e que também era seu. Então deixou-se estar. E foi ficando, aguentando, teimando e relevando mais de vinte anos de pequenas rotineiras infelicidades, vontades diárias de mandar àquela parte e um desamor que se erguia entre eles sumptuosamente.
Dona Ricardina tinha habituado o Fonseca que lá em casa quem usava o cinto era ela. E não admitia discussão. Fonseca, por sua vez, tinha habituado a esposa à clausura solitária no seu escritório, como gostava de chamar ao quartinho dos fundos que ela lhe tinha concedido onde passava os dias sentado a uma mesa a ler jornais ou romances policiais, fazer palavras cruzadas e, mais recentemente, escrever as suas Memoirs. Há uns três anos conseguira comprar um computador com o dinheiro que juntara do subsídio de invalidez que recebia descaradamente há mais de dez. Não era inválido, nem nada que se parecesse, mas um médico amigo dos tempos de tropa ajudara-o com os papéis que atestavam uma “deficiência crónica, genética e congénita no joelho” que o impossibilitava, de todo, movimentar-se normalmente. Por vezes até fingia que coxeava e tudo para conferir mais verosimilhança à sua invalidez. Para Dona Ricardina era “o aleijado” e nada mais. Com o computador, Fonseca rapidamente descobrira a Internet e a magnífica oferta de vidas e sonhos paralelos aos seus mas que bem poderiam ser, em realidade, os dele, Fonseca, que também era filho de Nosso-Senhor-Jesus-Cristo e merecia um ou dois sorrisos diários. As poucas horas que costumava passar fechado no escritório transformaram-se numa verdadeira obsessão, já só saía para comer, aguentava o xixi horas e horas e quase não dormia. Dona Ricardina a princípio não ligava. O que ela queria era que o aleijado não a incomodasse para ela poder passar a tarde à janela a namorar, com toda a sua subtileza feminina, os homens charmosos que passavam. Com o dinheiro da sua magra reforma, a senhora explorava a criada e engordava o seu guarda-roupa. Poucas coisas lhe davam tanto prazer como comprar tecidos, sonhar com os modelos que via nas revistas e levá-los à costureira, onde voltava uma semana depois para provar e, se nenhum alfinete a picasse, até esperava que Dona Marilene cosesse tudo para levar para casa de imediato. No dia seguinte estreava-se à janela.
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