domingo, 26 de outubro de 2008

Maria Ramantxada: Epílogo

A convite da Feira do Livro de Lisboa, Arménio Vieira deslocou-se à diáspora após uma ausência de mais de vinte anos. Ninguém acreditava que o poeta deixasse as suas tardes de xadrez na esplanada central, nem que fosse apenas por uns dias, para se enfiar num avião com destino (ainda por cima) a Portugal. Rolou aposta, rolou tudo mas o facto é que, naquela madrugada de Junho, o escritor deixava para trás o Monumento ao Emigrante erigido na rotunda do aeroporto. Si ka badu, ka ta biradu.
Após cerca de oito anos sem nada dar à estampa, Arménio regressava com um romance policial e estreava-se assim neste género. Teve honras de grande escritor, elogios que normalmente eram dirigidos àquela tríade africana Germano Almeida- José Eduardo Agualusa- Mia Couto, comitiva à sua espera no Aeroporto da Portela e tudo! O Conde começava a sentir-se indeed membro da realeza. Levaram-no ao hotel no centro de Lisboa, instalou-se na sumptuosa suite, acendeu um Davidoff, mirou-se ao espelho e sorriu entre baforadas. Valera a pena, tudo valera a pena!
Vestindo a capa de notável e excêntrico escritor das ilhas, Arménio desceu ao bar do hotel onde o aguardava a jovem que o iria apresentar ao público nessa mesma noite. A si e ao seu mais recente romance: Vermelho Escarlate. Quando a viu cruzar a perna à mesa e pedir um whisky, Vieira achou-a ainda mais nova do que certamente seria: 30 anos no máximo, pinta de 23 e vozinha de 12. Cabelo castanho curto desalinhado, olhos grandes e expressivos de gato, nariz arrebitado, boca fina e rasgada, rapariga para o seu metro e setenta, botas de cano alto e vestido preto. Justo. No momento em que Arménio se abeirou da sua mesa, Joana Carvalho engasgou-se no whisky, tossiu muito e esbaforidamente, pediu desculpa, que desculpasse muito e continuou naquela convulsão entre perdigoto que se solta, comichão na garganta, excitação de estar perante aquele homem cujas palavras tanto admirava e embaraço pela sua própria figura atabalhoada. Acalmando-se a garganta e os nervos da pequena, puderam sentar-se e trocar impressões sobre o alinhamento da sessão dessa noite no Parque Eduardo VII.
Assim que entrou no recinto-anfitrião da Feira do Livro de Lisboa, Pires-Laranjeira, o aclamado crítico de literatura africana, veio estender-lhe a mão, dar-lhe os parabéns por semelhante lufada de ar fresco na escrita cabo-verdiana, quem diria que por detrás do poeta se escondia um impressionante homem do crime, semelhante era a minúcia com que descrevia os homicídios desse terrível Jack the Ripper de Santo Antão. Arménio balbuciou algo indistinto e foi imediatamente ao bolso buscar um cigarro. Insistia em manter a sua pose arrogante e elitista, aparentemente não se deixava deslumbrar por nada nem por ninguém, quando avistou António Lobo Antunes, do outro lado de um enorme corredor de livros da Caminho, ambos se contraíram e lançaram aquele olhar fechado e provocador de cowboys no Far West: pernas entreabertas em U, mãos pousadas no coldre prontas a sacar a arma, assobiozinho western a lembrar o mestre Clint Eastwood ao longe, o bom-o-mau-e-o-vilão!
Sentado na mesa de honra, de frente para um público curioso e ansioso, Arménio começou a sentir-se inquieto. Não tinha nada com que ocupar as mãos, uma espécie de suor frio descia-lhe pelo cabelo oleoso, tentava concentrar-se em não abanar a perna enquanto ouvia Joana a tentar uma interpretação plausível do horror descrito na sua obra. A rapariga apoiava-se em expressões como intensidade dramática, metalinguagem literária, imagética do locus horrendus, algumas ressonâncias de Frankestein de Mary Shelley, metáforas da fragilidade humana perante a pata opressora e pesada do desenvolvimento incontido, desmesurado e atroz, sanidade versus loucura e a mente de Arménio fugiu-lhe e soltou-se… já não via nada à sua frente, apenas o terror nos olhos dela quando percebeu que ia morrer, sentia os seus braços a apertá-lo no desespero de o tentar deter e ao mesmo tempo de o levar a penetrá-la, mais de trinta anos de puro desejo reprimido, disfarçado, adiado e, naquela noite, a ilusão de que a espera havia chegado a fim. Gargalhadas que o despertam, o auditório sorridente e expectante aguardando as declarações do notável escritor. Abre a boca e não lhe sai um som, sorri para disfarçar, Joana-bombeira diz que deve ser da emoção e continua o seu solilóquio. Não fazia ideia que um ser humano podia conter tanto sangue nas veias, sangue vivo e feroz que esguichava por todo o lado. Quis acabar com ela, acabar com aquela vontade de a querer todos os dias, de fingir que não sentia o seu desprezo. Quis matar o seu amor por já não aguentar mais amá-la assim. Quis extinguir a única pessoa que sabia que ele era capaz de procriar, que tinha um filho e que a obrigara a dá-lo ao mundo. Não queria mais cúmplices para a sua egocêntrica monstruosidade que o fizera abdicar do fruto daquele amor apaixonado e doentio e permitira que aquele pobre rapaz fosse abandonado, saltando de lar em lar, procurando respostas e, nada conseguindo, escondendo a sua dor debaixo da tinta berrante com que pinta o cabelo todas as semanas. Uma ligeira cotovelada… hã? Inspiração para a criação daquele serial killer que aterrorizava o Paúl? Arménio cora ligeiramente. O homicídio de Maria Ramantxada já tinha sido há sete ou oito anos. Nos livros, sorri, nas minhas intensas leituras e no cinema, claro. Já alguma vez lhe disse que quando era miúdo, lá na Ponta Belém, eu e os meus amigos fazíamos colecção de pedacinhos de negativos de filmes? Joana confessa que não fazia ideia que ele fosse um admirador da Sétima Arte e que nunca lera nada a esse respeito. Pois é, menina Joana, pois é, sorri Arménio maldosamente perante um público ignorante, sabe que os críticos acreditam saberem tudo sobre os escritores quando em verdade não sabem nada. E remata, piscando o olho: eu, por exemplo, sou uma caixinha de surpresas!

6 comentários:

Unknown disse...

Genial, parabéns. E eu que estive na feira do livro e não apanhei esse histórico lançamento... porra!

Unknown disse...

ke isso minhokinha? isso é ficção. Tá mt louco, desatei a rir descotraladamente. Vai ver vou deixar para ler minhokinha fora de hora de expediente. se não o povo vai ficar achando que devo estar louco ou a ver coisa errada durante o rush hour.

Mt bom, Beijocas!!

Minhokinha disse...

Caro JB, é com uma longa passadeira vermelha que o recebo na toca da Minhoka! Muito obrigada pelo comment inaugural e pelo mimo da semana passada no seu blogómetro.

Tide, já sabes: leitura não recomendada a hora e local de trabalho! Ainda bem que te divertiste, fico (ainda mais) feliz!

Minhokinha**

Anónimo disse...

Mutu fixe!

Ainda bem quem não acabou.
Estás muito criativa e divertida.

É isso aí... pa frenti k'e kaminhu

Anónimo disse...

Não pares nunca! Sódadi dimás!

GreenHouseSpecial disse...

Olé minho-kinha!

O nível da escrita parece aumentar a cada novo post, that's the way!

Consegues criar uma cena visual na cabeça de quem te lê... e isso não é nada fácil.

O bom-o-mau-e-o-vilão! :D genial


***'s e até breve!