segunda-feira, 21 de julho de 2008

Maria Regateira ou Maria Ramantxada VI

Améliazinha acordou num sobressalto com os gritos que ecoavam no prédio. Acudam, acudam, chamem a polícia, um médico! Ainda em pijama e de cabelo desgrenhado, a professora veio espreitar às escadas e viu um sobe-e-desce apressado, um frenesim de pessoas que subiam ao andar por baixo do seu, entravam em casa da Dona Maria, soltavam um “ai que horror!” ou um “ai que impressão, credo!” e voltavam a descer até à rua. Ai meu Deus, Nossa Senhora de Fátima, bradou a professorinha para si própria, só pode ter acontecido alguma tragédia à vizinha. Ai valha-me Deus, deixa-me ir lá!
Com licença, ouvia-se uma vozinha fininha, meiguinha, docinha. Vozinha de diminutivo tal como a professorinha. Améliazinha. A terra que vira Maria Amélia nascer nem vila chegava a ser, era um daqueles lugares ermos, perdidos nas montanhas áureas de Trás-os-Montes, norte de Portugal, sul da Europa. Quando lhe perguntavam de onde vinha, ela respondia com ar de quem acabou de entrar pela porta dos fundos sem pedir licença, sou de Trás-os-Montes. Ligeiro, rápido e concomitante subir de ombros, olhos baixos de provinciana, maçãzinha do rosto timidamente ruborizada. Concluíra o curso de Língua Portuguesa na Universidade da Beira Interior e, não tendo reais perspectivas de emprego no seu país, decidiu candidatar-se a um daqueles programas europeus de nome complicado cujo objectivo implícito é “ajudar os coitadinhos dos pretinhos de África!”. Ora, tendo sido seleccionada, Maria Amélia, natural de Lugarejo-Nenhum, sentiu-se a Angelina Jolie versão Tuga: iria em missão para África ajudar os pobrezinhos. Coitadinhos! Chegada à Cidade da Praia muito se comoveu com as criancinhas desgraçadinhas da sua escola primária em Safende, muito chorou, triste e impotente, com os meninos de rua, os que pedem 5 escudos e um pão para comer, muitas bolas de berlim distribuiu pelas bocas esfomeadas, sujas e ainda com dentes de leite… enfim, Maria Amélia esquecia-se dos seus 34 anos de vida (namorado? Ai Jesus, era o que me faltava! Agora um homem para me vir tirar o sossego, não não, nessa não caio eu!) e dedicava todo o seu ser altruísta à ajuda voluntária aos necessitados, fracos e oprimidos.
Ao entrar em casa da vizinha viu as fardas da Polícia Nacional a farejar cada canto. Mas o que aconteceu? O que se passa? A Dona Maria sabe que estão aqui a bisbilhotar-lhe a casa toda? – inquiriu a vozinha de cana rachada. Ó menina, então não sabe que a Dona Maria foi brutalmente assassinada? A menina afinal quem é? Vizinha de cima? Então alto lá que já não vai a lado nenhum, precisamos falar consigo. Se forem lá bater os da Judiciária a menina não responda a nada e diga que quem está a tratar disto é a Polícia Nacional, está bem?
Coitadinha da Améliazinha que já nada ouvia e mesmo a figura do policial, que até era bem parecido, se desvanecia à sua frente. Brutalmente assassinada? Mas como? Por que motivo? E por quem?
Estando Amélia nestas reflexões nem se apercebeu de alguém que entrara com espalhafato. Só quando sentiu um encontrão no ombro é que despertou e viu. Viu-a. Não se conheciam mas eram uma espécie de arqui-rivais: uma era do Bem e outra era do Mal. Uma queria ajudar, a outra queria lucrar. Uma era Améliazinha, coitadinha, e outra era Vivian Espírito-Santo (Totta & Açores por matrimónio), jornalista classe A da televisão privada com mais audiência do país.
O metro e oitenta de Vivian, magra de cabelos escuros e escorridos que se demoravam em brilho até ao meio das costas, contrastava severamente com o metro e sessenta e cinco do corpinho gorducho de Améliazinha e respectivos caracóis loiros sempre escrupulosamente colocados atrás das orelhas. Vivian tinha a capacidade de entrar numa sala e deixar todos boquiabertos com a sua presença, a altura dos seus tacões Manolo Blahnik, a tez incrivelmente morena e uma voz autoritária, grave, de comandante. Era a cara da televisão privada cabo-verdiana Pivêt, contratada em Portugal por alguns milhões para vir aproveitar-se da miséria dos pretinhos de África. Coitadinhos! As condições que a jornalista tinha imposto para deixar a sua casa de Cascais e vir para o foco do Paludismo eram claras e estavam à vista de todos: mansão a paredes-meias com a do Presidente da República Pedro Pires, AUDI A4 com motorista privado, fins-de-semana na Europa para se inteirar das notícias do mundo de quinze em quinze dias e um salário com muitos zeros. Ao concluir a licenciatura em Comunicação e Marketing, Vivian tinha feito um juramento de honra à bandeira do Sensacionalismo, seu Deus em todas as horas da noite e do dia a quem votava a sua mais sincera dedicação. Ainda na semana passada, uma menina de onze anos terá sido alegadamente violada numa dessas aldeias do interior da ilha de Santiago. Imediatamente o AUDI pôs-se a mexer em direcção à notícia porque o público merecia saber 1. quem é a menina em questão; 2. quem são os seus pais, amigos e vizinhos; 3. como decorreu o processo da alegada violação ao pormenor, a saber: doeu? Não doeu? Se doeu, doeu muito? De zero a dez em quanto classificaria a dor? E sangue, terá a menina perdido? Muito ou pouco? Bem, vamos lá ser precisas, dava para encher um copo de água?
Vivian sentia-se satisfeita com o exercício da sua profissão. Ao jornalista cabia dar a informação, claro, mas também torná-la minimamente interessante, senão quem prestaria atenção ao seu bloco noticioso? A guerra das audiências era uma realidade e não seria ela, Vivian Espírito-Santo de Totta & Açores que iria ficar a perder.
Naquela manhã de meados de Junho ouvira dizer que alguém tinha sido brutalmente assassinado no Plateau. Vivian nem esperou que o motorista acabasse de polir o Audi, enfiou-se num táxi com o seu operador de imagem e lá foi em direcção à Rua dos Prazeres. Ao chegar à porta do prédio quis saber quem era a vítima. Maria Ramantxada? Que nome estranho, é pouco, tenho de arranjar mais pormenores e sobretudo sensacionais. Um breve inquérito no Covil deu-lhe o que precisava: com que então fama de ser deveras namoradeira…

Notícia de abertura do telejornal das 20h na Pivêt:

Uma mulher de cerca de cinquenta anos, e comportamento moralmente duvidoso, foi encontrada morta na sua casa no Plateau, na Cidade da Praia. (Os dentes brancos imaculados continuavam) Ao que a Pivêt conseguiu apurar, esta senhora dedicava-se a roubar os maridos alheios, logo terá sido obviamente assassinada e totalmente desmembrada por alguma esposa zelosa que, naturalmente e com toda a razão, vingou os desvairos adúlteros do seu marido com a referida senhora. Gostaríamos de acrescentar que é bem feita e que as autoridades competentes deviam legislar medidas contra estas mulheres sem vergonha que só sabem roubar os maridos das mulheres decentes.
Com o rigor e a isenção a que já o habituámos, uma reportagem de
(aquele sorriso brilhante e envaidecido) Vivian Espírito-Santo de Totta e Açores.

4 comentários:

Unknown disse...

Minhokinha esta Maria Ramantxada, é só tragedia !! Como assim, tanta desgraça junta ??
Continua, continua sempre, pois apesar da tragedia está muito bem elaborada -;)
Beijos
-;)

GreenHouseSpecial disse...

Cara Minhokinha,

Começo a suspeitar que a Maria foi assassinada por uma mulher de Bragança... quem sabe uma das entrevistadas pela revista TIME na reportagem "Bragança - Red Light District Portuguesa"!

A Vivian fez-me recordar da Vitória Espírito-Santo... e questionar se a Poveira acompanha o seu blog!?!

Adorei o "juramento de honra à bandeira do Sensacionalismo, seu Deus em todas as horas da noite e do dia a quem votava a sua mais sincera dedicação"! Fez estágio na TVI? :P

Cada vez há mais elementos e personagens em torno do tema principal... está a construir um castelo e estamos curiosos para ver o desfecho final. Ansioso pelo próximo "episódio"!

A Joaquina Barbosa (aka Mana) viu o blog pela primeira vez e ficou deveras impressionada com a sua escrita ;)


Namastê e muita inspiração***

Por: Catarina Abreu disse...

Mais um belo trabalho da Minhokinha a retratar as personagens da Cidade da Praia, que não faltam, claro está, as estrangeiras.

A típica professora, que com medo do mundo, cometeu a façanha da sua vida ao vir para Cabo Verde, descansando assim a sua consciência de "mission accomplished" no que toca à aventura.

A jornalista sensecionalista que vem piorar, com toda a ciência do seu Deus, os maus exemplos de Jornalismo neste país.

Adorei a ironia que usaste a retratar uma situação bem real. O que é preciso para abrir os olhos das pessoas?

Loved it! (mais uma vez)

Anónimo disse...

Não fosse pelo bom gosto dos Manolo Blahnik diria que esta Vivian estagiou com a Manuela Moura Guedes! Está cada vez mais interessante este policial em género de vamos-mas-é-criticar-costumes-e-gentes-que-tais:)