domingo, 13 de julho de 2008

Maria Ramantxada V

Quando as lojas comerciais fecham as portas e as pessoas começam a recolher às suas casas, o Plateau vai lentamente perdendo a vida. Uma ou duas mãos de gente à espera dos últimos autocarros, apoiando numa das pernas o peso do dia; alguns rapazinhos jogam à bola no meio da merda espalhada nos becos da Ponta Belém; uma mulher rota escrutina uns sacos de lixo esquecidos num poste; um louco imundo dorme na porta duma casa e sonha que é rei; dois miúdos da vida vagueando perdidos em busca de vinte escudos; as portas do único hipermercado, curiosamente chamado Palácio do Consumismo, escancaradas debochadamente até tarde para quem ainda quiser vir comprar.
Às 20h00 são cada vez menos os que se passeiam pelo centro da cidade e é a esta hora que o poeta deixa o seu castelo. “Irreverente e indomável espadachim da sorte e da morte, poeta de vento sem tempo”, Arménio Vieira é, antes de qualquer outro atributo, antes até de ser Arménio, o Conde: auto-denominado com orgulho e amiúde referido por todos os que o conhecem com certa reverência. Arménio, como todos os poetas, é um animal noctívago, não por recusar as delícias do dia mas por insistir em escrever apenas à noite. Começa por sair quando todos os outros regressam e vai pelas ruas desertas, só ele e os cães sarnentos, a recitar Rimbaud, Borges, Baudelaire, Pessoa, tiradas inteiras da Eneida, da Odisseia, o seu prazer literário não tem fim. Esta é a hora em que permite que os alucinantes relâmpagos que lhe ocorrem durante o dia na esplanada central, local diurno de culto perseverante, assentem na poeira da mente e o labor do artífice o domine. Fuma um Marlboro atrás do outro e murmura e recita-se. É um grande egocêntrico, ama a sua lírica acima de todas as outras. É o “tal poeta vadio que olha para as nuvens a ver se algum anjo deixa cair o cigarro”. Já passou certamente a casa dos cinquenta mas conserva um sorriso de puto atrevido que, juntamente com a franjinha preta desordenada e uma ligeira sarda na bochecha, lhe emolduram uma expressão quase pueril.
Todas as manhãs, sem falhar uma, Arménio sai do seu castelo, casa secular, imponente e decadente, como convém a um verdadeiro poeta, no centro do Plateau e desce a rua até à esplanada central coberta por três grandes guarda-sóis. Cabelo oleoso por regra, ligeira queda na nuca que, de uma maneira muito estranha, o assemelha ao Papa Bento XVI, camisa solta e coçada, irremediavelmente aberta até quase ao umbigo, ligeiro vislumbre dum colar fino de ouro, calças de ganga dobradas em baixo a fazer lembrar um banhista em férias, havaianas azuis incrivelmente modestas que suportam o peso da criatividade e da (os ingleses diriam, e bem) uniqueness de ser Arménio. Ossos das ancas ligeiramente inclinados para a frente (a marcar dez horas e dez minutos no relógio do seu corpo magro), andar descontraído, ponta de cigarro a queimar entre os dedos da mão direita nem que chovam picaretas, Arménio Vieira, o tal que grita:

“Os sapos coaxam, os corvos crocitam,
Cristo falava, Paulo escrevia. Eu sou
como sou. Tenham paciência.”

Passa o dia à volta duma mesa a conversar com os amigos, debate assuntos tão ecléticos como desporto, mundo animal, mulheres, história, política nacional e internacional, literatura e arte em geral; é viciado no tabuleiro de xadrez (a tal ponto que junta sempre uma plateia atenta de jovens à sua volta) e um mulherengo incorrigível. Mulheres não lhe faltam mas considera-as vãs. Quando qualquer par de nádegas sai de cima de si num suspiro final meio abafado, Arménio só pensa em masturbar-se logo a seguir. Não tem prazer, ninguém lhe sabe a nada. Desde aquelas ancas volumosas de há mais de trinta anos, do cheiro a volúpia e a pecado que ela guardava na dobra do pescoço, desde as noites de sexo gritado e espancado, de versos obscenos sussurrados numa mordidela, desde esses tempos que o poeta não conhecia o verdadeiro sabor do amor sexual, o tal que não se compara a qualquer tipo de vulgar brio de corpo. Desde que Maria, de tamanco na mão, lhe apregoara em tom alto e assertivo “Nunca mais te quero ver” ele decidira não mais amar, não mais se entregar a quem quer que fosse. Cumpriu o pedido e nunca mais a procurou. Se por ventura a visse passar na praça da esplanada, a dois metros de si, fazia de conta que aquelas ancas roliças e aquele peito almofadado nunca tinham sido beijados por si. Nunca tinha mordido aquelas pernas, não conhecia de cor o cheiro do seu cabelo.

5 comentários:

Minhokinha disse...

Um aviso a todos os leitores assíduos da Maria Ramatxada:

não será fácil continuar a acompanhar esta intriga recentemente transformada em policial. A Maria era uma mulher de variadas e intensas ligações na Cidade da Praia e à Minhoka cabe dar conta de tudo.
Apelo, portanto, à vossa perseverança. Iremos sim descobrir quem a matou e porquê mas, claro, só no capítulo final! Entretanto, já há palpites?

Abraços a tod@s da Minhokinha*

GreenHouseSpecial disse...

Minhokinha,

É bom que o próximo capitulo esteja para breve... cria aquele suspense e agora nem noticias da Maria?! Estou curioso e sem o mínimo palpite, afinal de contas, quem faria uma coisa tão macabra?

Gostei do Arménio Vieira, do nome e da caracterização que fez do poeta... até fez ir ver o que significava pueril. :)
Só por curiosidade, de quem é a autoria do grito? Do best!

Don't stop ;)

Beijinhos***

Joaquim Barbosa a.k.a. AKA

Unknown disse...

Olá Minkokinha,que desespero!! tanto tempo, e nada ...

Gostei muito da forma como caracterizas Arménio Vieira. Aquela, "ossos das ancas ligeiramente inclinados para a frente (a marcar dez horas e dez minutos ...... ) está de partir -;)
Adoro-te muito!!! Continua mas com espacinhos pequeninos.
:)
Beijos

Por: Catarina Abreu disse...

Que descrição tão potente de uma pessoa que recentemente comecei a admirar (e que depois disto, parece-me admiro ainda mais). Acima de tudo aplaudo a tua coragem por ousares uma descrição tão 'sui generis' de um escritor conhecido da esplanada dos três grandes quarda-sois, onde tudo se sabe e tudo se conta.

Sinceramente, não quero arriscar palpites nem que termines a Maria Ramantxada tão cedo. Porque cada capítulo é um prazer.

Beijo no coração de quem gosta muito de ti.

Sofia Fonseca disse...

ana,

sta d+..
hj djan fazi um parodia li ku nos maria ramantachada..

ago xan trau txapeu pa es deskrison di armenio..

es episodio li.. ki nsta konta ku vingansa a nos killer.. bu suprienden

adooorei

beijos
sofss