quinta-feira, 22 de outubro de 2009

O Salto (V)


Outono de 2009, Roseto Degli Abruzzi


De manhã


Olha, mãe, lá está aquele senhor no sítio do costume a ver o mar. Está ali sempre todos os dias quando me vais levar à escola, não é? É sim, filha. O senhor deve gostar tanto do mar como tu. Quem será, mãe? Não sei, querida, dele só sei o mesmo que tu, todas as manhãs está ali sentado na areia, ao lado daquele campo de jogos, a olhar para o mar. Oh mãe, mas não te lembras que no outro dia ele estava a escrever num caderno vermelho? Se calhar é escritor. Sim, filha, talvez seja escritor. Deixa lá o senhor. O que será que ele está a escrever, mãe? Será sobre o mar? Ai filha, deixa lá de fazer tantas perguntas, ainda por cima a esta hora. O senhor gosta de estar ali na praia, não há nada de mais nisso. Não sei, mãe, não sei...ele tem um ar muito misterioso. Parece que anda a esconder alguma coisa. Deve parecer, deve. Oh filha, tu e as tuas manias de Sherlock Holmes!


Giuseppe, Giuseppe anda cá! Olha, estás a ver aquele homem? Aquele que vem dali do mar? Aquele é o tal de quem te estava a falar no outro dia, não te lembras? Quem, mulher? Ah, aquele que vem ali com o caderno vermelho na mão? O que tem? Tem que o acho muito estranho, não sei, há qualquer coisa naquele homem que me incomoda. Chiu, cuidado! Ele vem para aqui, ele vem para aqui. Ó mulher, não faças essa cara, tu não vês que ele vai entrar? Vá, vai lá ver o que ele quer. E não te ponhas com modos esquisitos, ouviste?
Buongiorno signore! O que vai ser? Sim sim, fazemos tostas de salami. E para beber? Muito bem, então sai uma tosta de salami e um cappuccino!
Ó mulher, eu estou aqui a olhar para ele e acho que deve ser escritor. No outro dia o Felice disse-me que ele foi lá à pastelaria e que passou o tempo todo a escrever naquele caderno. O Francesco, dos Correios, disse-me que ele é português e que já lá foi mandar duas ou três cartas para Lisboa. Português, Guiseppe? Veramente? O que fará um português tanto tempo aqui sozinho, hã? Boa coisa não deve ser. Ai mulher, que exagerada! Tanto tempo, dizes tu? Eu lembro-me de ver este homem aqui desde finais de Setembro, ainda nem passaram dois meses.
Olha para o que eu te digo, homem: este português ainda vai arranjar alguma confusão aqui em Roseto.


À tarde


Chiara, abre a porta e vai ali àquele signore dizer-lhe que já pode entrar. Aquele que está ali no jardim sentado no banco por baixo da árvore. Ó rapariga, então tu não vês um homem sentado naquele banco a escrever num caderno vermelho mesmo aqui à nossa frente? Vai lá dizer-lhe que a biblioteca já abriu.
Buon pomeriggio, signore! Procura algum livro em particular? Ah, jornais... com certeza. A secção da imprensa periódica é no andar de baixo, eu levo-o lá. Não, ora essa, não é maçada nenhuma, é o meu trabalho. Queira acompanhar-me por favor.
Está a ver aqueles computadores? Pode fazer uma busca por ano de publicação ou tema e saberá ao certo onde encontrar o jornal ou a revista que procura. Por exemplo, diga lá qual é o ano que lhe interessa. Muito bem, agora colocamos aqui 1974 e enter. Já está! Sim, tem muita coisa de facto, sabe que a década de 70 em Itália deu bastante que falar pelas piores razões. Quer escolher um tema que delimite a sua busca? Hã? Desculpe, não entendi. Brigadas Vermelhas? Tem a certeza? Vai-me desculpar mas vou ter de registar o seu nome, apelido e fotocopiar um documento de identificação. Ordens são ordens, signore, e esta conversa já me está a deixar nervosa, sabe? Diga-me a verdade: o signore anda à procura de problemas, é?

Na madrugada


Domenico, acorda! Domenico! Domenico, acorda! Olha, presta atenção, estás a ouvir? Não ouves passos no andar de cima? E este cheiro... cheira a quê? Parece alcóol misturado com qualquer coisa. Já não se pode dormir em paz neste prédio, é sempre este cheiro quando o vizinho de cima chega a estas horas da madrugada. Liga a luz para eu ver bem que horas são. Quatro e quarenta, vês? Isto lá são horas normais de se chegar a casa? Este homem não dorme, o que andará ele a fazer? Chega sempre antes de amanhecer, arrasta os pés ao de leve como se não quisesse fazer barulho e depois sente-se este cheiro a alcóol e mais não sei o quê. Ai que nervos, até vou fechar a janela. E digo-te já, Domenico: amanhã de manhã vou ligar ao senhorio e contar-lhe tudo. Não sei quem é este português que não se dá com ninguém nem o que anda a fazer aqui em Roseto, para além de escrever naquele maldito caderno vermelho, mas vou descobrir, ai isso garanto-te que vou descobrir. E agora chega-te para lá e não me destapes que eu quero ver se durmo.

5 comentários:

Sarabudja disse...

Quero mais!
Mil vezes bravo. Estou em pulgas. Leio e releio.
Beijinho

Catarina disse...

mi-nho-ki-nha!!! Andava mesmo a leste deste "Salto"e tive a sorte de encontrar e ler de um trago só! Que maravilha... n demores mto q eu mal posso esperar pelo resto, tá???

bjossssss

P.S.- agora entendi aquele sms do Pratas lollllllll

Anónimo disse...

Esta cena não me é nada estranha!!!
Será que o caderno é mesmo vermelho ??? Não será preto ???
Estou a gostar -;)
Para a próxima não demores tanto ;)
Beijinhos grandes
IM

Unknown disse...

intrigante :D

Ana Rita disse...

Sim, intrigante...e não é que me cheirou mesmo a álcool e me apetece mesmo um capucino :P Vá, agora não demores...que a gente tá á espera :)