segunda-feira, 10 de novembro de 2008
O que ando a ler: Contos Policiais
"É um crime, caro leitor. Um crime! A vítima somos nós, leitores portugueses, e não há dados que nos apontem para um possível assassino. É praticamente um dado unânime que a literatura portuguesa é vítima de um crime de ausência: a do policial entre a nossa ficção."
É com estas palavras que o coordenador de Contos Policiais (Porto Editora, 2008), Pedro Sena-Lino, justifica o convite a nove escritores para que se embrenhassem no género iniciado pelos mestres Edgar Allan Poe, Arthur Conan Doyle e Agatha Christie. Assim, Dulce Maria Cardoso, Francisco José Viegas, Gonçalo M. Tavares, Hélia Correia, Mafalda Ivo Cruz, Mário Cláudio, Ricardo Miguel Gomes, Rui Zink e valter hugo mãe recolhem as impressões digitais dos mais variados crimes e levam-nos a percorrer alguns dos caminhos dos seus mistérios.
Para aguçar a curiosidade do leitor, deixo aqui um excerto daquele que, para mim, é o conto mais surpreendentemente bem narrado: "Desaparecida", de Dulce Maria Cardoso (quem é esta ilustre "desconhecida"?)
As moscas não paravam de volta dela. A mulher abanava a cabeça, mexia o corpo em gestos brutos mas as moscas já não fugiam. Deixavam-se ficar pousadas e a mulher sentia-lhes as patas a fazerem comichão, de vez em quando as picadas. A mulher estava de pé. Tinha as mãos algemadas atrás das costas. Estava ferida e não dormia há mais de dois dias. Respirava com dificuldade. O sol ardia-lhe no corpo especialmente nas partes que a roupa não cobria. As moscas lutavam pelos sítios onde a carne inchara e onde o sangue ainda não coagulara. (...)
Os homens estavam perto da mulher, atentos à cova que se abria. Eram quatro mas só um deles cavava. (...)
Um deles, o mais alto de todos, aproximou-se dela a fumar, queres?, perguntou estendendo o cigarro. A mulher não respondeu mas mesmo assim ele pôs-lhe o cigarro entre os lábios feridos. Dá uma passa, disse. Ela deu.
E por uma questão de justiça, deixo também à vossa consideração um outro excerto do que me parece ser o momento mais infeliz desta edição, curiosamente do jovem que ganhou o prémio José Saramago (2005) e que passou a ser conhecido como aquele-que-publica-mais-de-três-ou-quatro-livros-por-ano: Gonçalo M. Tavares, "Bucareste-Budapeste: Budapeste-Bucareste"
Chegados de Budapeste. Dois vultos de noite. Duas manchas escuras sobre uma grande mancha escura. Mas as duas pequenas manchas escuras agem, têm um objectivo; a noite, essa - a grande mancha escura - tudo indica que não; não tem objectivo. (...)
Os dois homens entram para um novo escuro, um escuro mais pequeno, fechado, organizado. É dentro da noite, mas fora da noite.
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