quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Maria Ramantxada X (aleluia!)

“Boa tarde, senhores telespectadores, encontramo-nos aqui na conhecida pracinha da Escola Grande, na Cidade da Praia, onde uma manifestação de cidadãos sem precedentes clama por justiça.” A imagem abandona o sorriso amarelado da jornalista Tamblina Dias e concentra-se nas dezenas de pessoas lideradas por Santos-Lima, percorre a praça, foca os jogadores de xadrez da esplanada do Café Central, os bancos de jardim ocupados pelos miúdos que saíram do liceu e pelas mães que monitorizam atentas as brincadeiras dos filhos, voltando a centrar-se no tal sorriso sem sal. Tamblina Dias, jornalista das sérias, famosa pelo seu bordão linguístico de muito bem pronunciar os s’s finais de cada palavra, continua o seu discurso pausado elucidando que é deverasch extraordinária a forma como os cidadãosch da Praia aderiram em massa a esta convocatória lançada pelo Professor Doutor Santosch-Lima e pela jovem revolution Aristё, de quem, aliás, sou amiga íntima, pessoal e intransmissível há muitosch e longosch anosch. Vem Aristё falar aos senhores telespectadores lá em casa da urgência em mover as massas em prol dos nossos interesses e não dos do sistema; vem Santos-Lima, grave e pesaroso, a lamentar as infâmias proferidas contra a sua grande amiga e também a manifestar a sua profunda revolta contra a falta de actuação da Polícia Nacional, que ainda nada revelou sobre o autor do crime; vem o marido de Dirce, directamente de Lém-Cachorro, dizer que o resultado da autópsia foi conclusivo: ataque cardíaco fulminante provocado pela visão horrenda das partes do corpo assassinado da patroa; vem Arménio que começa por clarificar que não conhecia a senhora de parte alguma e que nem sabe bem por que está ali mas que, sim, agora que pensa nisso, talvez se lembre dela quando era jovem e não parecia pessoa de fazer mal a alguém (esquiva-se o mais depressa que pode); vem Améliazinha, na qualidade de vizinha-que-não-deu-por-nada, chorar um pouco em directo, que é muito bom para o share; vem Senhor Djony, dono do Covil, atestar que a pobre alma descansa em paz porque nada ficou a dever no seu estabelecimento; vem um qualquer poeta de renome com um poema improvisado a grogue para a ocasião (Maria hora di bai, nu fica li sem bu sabura…) e com semelhante procissão o sorriso de Tamblina Dias amarelece cada vez mais. Enquanto isto, outras pessoas vão-se abeirando da praça. Chegado das mesas do Café Central aproxima-se Adão Decente, hoje de pêlo capilar cor-de-rosa, acompanhado do amigo do costume e duas boazonas de um metro e noventa com poucos trapinhos a cobrir as curvas naturais. O escultor-barra-apresentador-barra-figura-pública deixa cair um audível “Ai não acredito que já me apanharam na rua, não consigo passar despercebido em lado nenhum, de certeza que me vão querer entrevistar”. O amigo e boazonas concordam prontamente, de facto é um cusa fastenta não poder andar na via pública à vontade. Uma adolescente de 13 anos aborda o apresentador para se certificar que ele é, de facto, o rapaz que ela vê na televisão, ao que o artista responde, bradando aos céus: “Eu não disse? Eu não disse? Oh fama inglória (costas da mão direita na testa), oh peso infame que a Arte me dá a carregar, oh…” e já ia embalado para duas horas de dissertação pública sobre o sofrimento atroz dos artistas se não tivesse proferido a palavra mágica, aquela que, onde quer que seja dita ou apenas segredada, dispara o mecanismo de Anacleto Swainsteiger qual alarme de bombeiros. “Arte? Falaram em Arte Contemporânea? Por acaso estava mesmo a passar aqui ao lado e pareceu-me ouvir…”. Mal Decente abanou a cabeça em concordância, Anacleto levou de imediato os dedos ao queixo mimando os seus pelinhos queridos em pose performativa.

De repente levanta-se um vento ruidoso e quente. O famoso vento-levanta-saias das ilhas. Traz consigo um odor estranho que faz toda a gente voltar-se na sua direcção. Mamã, cheira a chulé, diz a menina dos olhos de rebuçado à mãe, que encolhe os ombros. Não seria só cheiro a pé sujo mas uma simbiose de muito fedores e quanto mais o vento soprava mais se sentia aquela náusea entranhar-se em todos. Aristё aponta para o telhado da Reitoria da universidade, mesmo do outro lado da praça, vejam, está ali qualquer coisa! É um pássaro? - arrisca o fotógrafo paulista; não, parece uma avioneta – responde Elisabete que, pela primeira vez na sua vida, chegara sem ser notada. O homem em cima do telhado vira-se para a multidão e é imediatamente reconhecido: é o desgraçado roto maltrapilho que anda descalço pelas ruas a vociferar e a cravar cigarros, cujo fedor é mais intenso do que uma fábrica de celulose. Aaahhhh… os ilustres e anónimos cidadãos da Cidade da Praia deixam cair o queixo. Aaahhh… os telespectadores lá em casa. Até Tamblina Dias não teve reacção. Em directo. O homem conhecido por Dú abre os braços à Cristo-Rei, exibe as vestes (calças? Camisa? Não se percebe) de um castanho-merda extremamente gasto, escancara o sorriso mais psycho que alguma vez se lhe viu, deixa à mostra o meio dente da frente e com um urro assustador declara:

Fui eu que a matei! Fui eu! Matei-a, queimei-a e parti-a às postas! Fui eu, fui eu!!

Nem um pio na pracinha da Escola Grande. A televisão gravou tudo, o país parou.

8 comentários:

Anónimo disse...

ooooooooooobbbbaaaaaaaaaaa!!!
O problema sempre é essa vontade que fica quando se acaba de ler um capítulo, de que o próximo venha muito breve...
beijocas
Pim

Catarina disse...

Oh amiga! Que maravilha!!!!!! valeu a pena a espera... não tenho palavras: ADOREI!

Anónimo disse...

Beleza!!!!

Estiveram todos bem, mas o Du surpreendeu. Belo disfarce.
Achei bodona a cena de ser o louco o matador. Se bem que só ele, até agora, o disse. Falta ainda o ultimo capitulo.

Mas por que o penúltimo? Porque o ultimo depois?

...isso pressupõe o inicio do novo. Espero bem que sim.

Gostei.

PS: O fotografo paulista foi hilário. Ouvi dizer que é viajado. Será que fala russo? (lol).

Anónimo disse...

Como sempre, fabuloso! Gato Esteves

Anónimo disse...

Muito bom Minhokinha!!!

Continuas a surpreender. Agora, também me parece que não é o "pobre" Dú o culpado de tão terrível homícidio!!!!!


Muitos beijinhos com pressa de assistir ao final

GreenHouseSpecial disse...

Olá kinhominha,

Valeu a pena esperar... solto sempre umas boas risadas :)

"vem Améliazinha, na qualidade de vizinha-que-não-deu-por-nada, chorar um pouco em directo, que é muito bom para o share"

"Oh fama inglória (costas da mão direita na testa), oh peso infame que a Arte me dá a carregar, oh…”

...e tantos outros pormenores que captas da vida quotidiana, de um modo fantástico e que posteriormente os transmites sob palavras no papel (neste caso: ecrã) sempre com um humor genuinamente teu, adoro!

Beijocas curiosas para saber quem matou realmente a Maria, pois acho impossível ter sido o "desgraçado roto maltrapilho que anda descalço pelas ruas a vociferar e a cravar cigarros, cujo fedor é mais intenso do que uma fábrica de celulose."

Brutal!***

Minhokinha disse...

Pois que o suspense seja alimentado até à última linha! Muitos de vocês não acreditam na veia assassina do Dú mas as aparências iludem. E na Cidade da Praia iludem mais ainda... ou não?

Tudo a descoberto no último e derradeiro capítulo já daqui a uns dias. Obrigada por seguirem esta espécie de Agatha Christie kriola! :)

Beijocas da Minhokinha*

Unknown disse...

Dú The killer!!!! Náaaaa o gajo é figura mas não mata nem uma barata. Talvez ele prefira come-las!!

Beijocas