sexta-feira, 6 de junho de 2008

Maria Regateira ou Maria Ramantxada (II)

E o ritual repetia-se todas as manhãs pontualmente às 8h15: o beijo do tacão ao passeio esburacado, os olhares concentrados na sua figura de oh e o segundo e meio em que a vida dos vizinhos e habitués da rua se suspendia ao admirá-la. Maria, como sempre, faz que não vê, lança um "Ora muitos bons dias!" bem audível e, enquanto ajeita a pala que o gel extra forte fixa no cabelo, encaminha-se para o mercado a fim de fazer a despesa do dia. Não confiava essa responsabilidade à criadita porque, obviamente, não era à toa que todos a conheciam por Maria Ramantxada: dava-lhe um enorme prazer regatear preços com as vendedoras atrevidas e quase igualmente regateiras.
Duas ruas e um cruzamento depois atravessava o portão de ferro velho do mercado que ostentava uma data de inauguração já desbotada. Tinha por princípio dar, antes de mais, o descontraído passeio de reconhecimento, como gostava de lhe chamar. Contemplava as frutas coloridas e cheirosas, os legumes frescos, ia averiguando "Dona, abóbrinha é kanto?", enquanto cumprimentava uma ou outra conhecida mas nunca se entregando a grandes conversas. O mercado era para as beatas e as fofoqueiras baratas. O seu nível, a qualidade do seu discurso estavam reservados para a exclusividade dos bares e das tascas, preferencialmente o Covil, à volta de uma ou duas garrafas bem quentes.
Depois de cuidadosamente seleccionadas as bananas, as mangas, as papaias, as maçãs e as laranjas, de calorosamente debatidos os preços das cenouras, do repolho, do alho francês e dos bróculos que, por vezes, miraculosamente davam à costa, Maria encaminhava-se para o seu mais-que-tudo do mercado: a pequena casinha onde funcionava a peixaria! Aí, dava-lhe especial gozo espicaçar a sua grande rival, antiga colega de carteira na escola primária que tinha tido a ousadia, aos oito anos de idade, de lhe roubar o seu primeiro pikeno: a Mimosa.
A peixeira Mimosa era um pouco mais escura, igualmente roliça e descarada que tinha a mania particularmente irritante de se dirigir a Maria com a sobrancelha direita bem levantada, mão na cinta, joelho virado para fora e um tom de voz superior, arrogante a roçar o hitleriano: O que vai ser hoje, Hã Maria? (sobrancelha quase no couro cabeludo) Sardinha? Chicharro?
Dias havia em que Maria andava tão leve e feliz com a sua vida que nem ligava, mas noutros, naqueles em que acreditava piamente que o universo conspirava contra si, aí não se ficava e até já atravessava o portão sedenta do big match of the day:
Starring
Maria "considerable weight" Ramantxada
vs.
Mimosa "giant ass" Peixeira

3 comentários:

GreenHouseSpecial disse...

Minho-kinha,

O teu futuro passa sem dúvida pela escrita! :)
Na escrita consegues exprimir tudo o que te passa na retina... e ainda mais. Tudo descrito ao pormenor como já é teu habito, e depois juntas-lhe umas pitadas de humor, que para ser sincero, sentia falta e assim até mato saudades.

"Starring
Maria "considerable weight" Ramantxada
vs.
Mimosa "giant ass" Peixeira"

eheheheh


Gostei do "porta-moedas preto que lhe dera a sua avó"... esqueceste-te de dizer que era a avó paterna ;)

Beijoca grande e fico á espera do próximo capitulo.


P.S.- Não deixes de escrever, senão ligo pra DECO!

Anónimo disse...

Brilhante!! a Mimosa não poderia nunca ter sido outra coisa!! Entendi li logo tudo:) O ofício dos ofícios para quem muito pouco de bom deve ter feito!!! Uma grande peixeira with a giant ass:) AMEI:):)

Gina

Eileen Almeida Barbosa disse...

Adorei o "a sombrancelha a tocar o couro cabeludo"! Excelente!