sexta-feira, 11 de abril de 2008

A Muda - História de uma Alcoviteira

Dá-se aqui a conhecer uma história de gaveta. Serve a minhokinha para a publicar em folhetins e assim espicaçar a curiosidade do caríssimo leitor. De como uma simples e eloquente muda se tornou pivot em horário nobre do espaço informativo português. De como um país insiste em ceder à vulgaridade. Olhemo-nos e reconheçamo-nos.
"Notícia de última hora: senhora dona Almerinda, sessenta e dois anos de idade, doméstica e surda-muda desde nascença é a nova pivot da TVI. A estação de televisão de Queluz orgulha-se de ultrapassar barreiras e preconceitos sociais e desta forma…”
O resto da notícia já não consegui ouvir. A voz do locutor da TSF foi ficando cada vez mais ténue, pequena, até desaparecer por completo no túnel das cogitações. Evaporei-me de mim e deixei para trás a pele e os ossos. Não conseguia acreditar que a minha vizinha do rés-do-chão fosse a nova cara do serviço noticioso da TVI relegando para segundo plano Júlio Magalhães, o homem que há anos faz daquela a sua casa. Sentei-me no cadeirão. Aliás, se não me tivesse sentado naquele segundo, certamente teria caído. As rótulas fraquejavam, não compreendiam que mundo é este. Então agora é uma muda que vai apresentar as notícias do país e do mundo diariamente? Haverá algum nexo nisto? E José Eduardo Moniz? Todo orgulhoso e confiante confirma o matutino deste dia. O director da estação considera esta contratação a decisão mais acertada dos últimos anos. Então e as reportagens-choque, senhor director? Não lhe parece que esse terá sido o maior préstimo da sua estação à comunidade? Bem, responde a peitaça inchada, as reportagens-choque foram só o início de uma longa escalada, chame-lhe o aquecimento ou o warm-up se preferir. Agora com a senhora dona Almerinda à frente do Telejornal finalmente colocamo-nos na vanguarda do profissionalismo e da eficácia. Neste momento sinto um grande orgulho em comandar os destinos desta estação.
Boquiaberta, e sem conseguir articular um único pensamento, procurei concentrar-me na vizinha, afinal conhecia-a desde sempre, habituei-me à sua presença constante no hall do prédio. Hoje esta mulher era outra: é a mulher que ultrapassou a Floribela em notoriedade! Capacidades comunicativas, em abono da verdade, nunca lhe faltaram. Se o Criador lhe tirou o pio, guarneceu-a de técnicas de expressão de qualidade deveras elevada. Não, não me refiro apenas à linguagem gestual. Isso já se sabe: quem não fala gesticula e mesmo sem um diploma em comunicação lá se desembaraça. Mas a Muda (nome pelo qual toda a gente a conhece no prédio por completa e acomodada ignorância do verdadeiro) não gesticula apenas, a Muda conversa mas sem palavras. Vemos imediatamente se está bem disposta ou preocupada, cansada ou orgulhosa dos netinhos recém-nascidos. Estes atributos variam consoante o dia. O único que impreterivelmente se mantém é a curiosidade, aliás, a acérrima curiosidade. Bem, na verdade, uma saliente veia intriguista é o que caracteriza esta senhora.
Mulher para o seu metro e cinquenta e cinco, cabelo curto puxado para trás, tem aquele penteado que lembra as actrizes dos psicadélicos anos setenta. Veste discretamente e acompanha-a quase sempre uma carteira estilo malinha de casamento que confortavelmente deposita na axila. Se não está na porta do prédio está no passeio, mais metro atrás ou mais metro à frente. Sabe sempre tudo, quem entra, com quem e quando sai. Lembro-me de pensar que a muda certamente elaboraria uma lista às escondidas onde registava religiosamente cada movimento dos habitantes do prédio número 49. 4h25 da madrugada: entrada suspeita de Susana acompanhada de um mancebo barbudo desconhecido… Enfim, isto é só um exemplo dos muitos que foram povoando a minha fértil e delicada imaginação quando era confrontada com a sapiência daquela mulher. “A senhora do 2º andar não está. Saiu com aquele cavalheiro que fuma mas não é o seu marido.” Isto dizia a Muda com apenas alguns gestos: elimina três dedos de uma mão deixando apenas dois à vista e bem esticados, o indicador e o médio; passa de imediato para um corte incisivo do ar estático com a palma da mão virada para baixo; aponta a porta de saída e simula um cigarro na boca finalizando com o destaque da sua própria aliança enquanto abana negativamente a cabeça. E está dito! Já se sabe o que foi feito da dona Alzira.

1 comentário:

Anónimo disse...

E as loucas noites das vizinhas do 7º andar??? Sabe-as todas, de certeza!!! Quem me dera saber o que ela sabe sobre essas duas...
M.Jane