A narrativa que se segue é sobre um desses letrados. […]
O escriba deteve-se junto a um enorme cartaz que dizia: O Faraó, nosso Imperador e Guia, tem um olho sempre aberto, mesmo quando dorme. Tende cautela, conspiradores, os crocodilos do Nilo adoram carne humana.
Em seguida, lembrou-se de que se lhe esgotara a erva para cachimbo. Arrastou as solas até uma lojeca e ali pediu um pacote de Populares.
- Ponha na conta do Sumo Sacerdote, sou neto dele – disse ao empregado.
- Neto de Sua Eminência, andas sem taco, pedes fiado e fumas Populares. Caramba! – exclamou o sujeito. […]
E assim, o escriba egípcio foi conduzido à presença do faraó.
Sua Majestade Amenófis XXVIII era zarolho, pequenino e muito gordo. Tinha uma cabeçorra calva (se bem que disfarçada por uma monumental peruca) e ostentava uma grande verruga na ponta do nariz.
O escriba, ao dar-se conta desta profusão de atributos físicos, sentiu uma vontade louca de rir. Mas, recordando-se dos vorazes crocodilos mencionados no cartaz, começou a tiritar de frio, a despeito da brisa quente que penetrava através de larguíssimas janelas.
- Ora bem – preambulou Amenófis XXVIII – tu és, realmente, neto do Sumo Sacerdote, por conseguinte um dos ramos mais ilustres da grande árvore nascida da cabeça do divino Toth, que descobriu a Estrela Polar, inventou os três alfabetos, dividiu o firmamento em onze céus e o ano em duas estações, fabricou o relógio solar de três ponteiros e ensinou que o tempo no seu todo é composto pelo presente, pelo pretérito e pelo futuro?
- Certamente que não vou jurar nem tão-pouco garantir. No entanto, é o que se diz por aí – respondeu o escriba.
O Faraó mordeu o lábio inferior e a seguir disse:
- Começaste mal, jovem escriba. Aqui no Egipto Sagrado ou há certezas ou não há. Toda a dúvida é uma ofensa aos deuses, de um dos quais eu, vosso Imperador, sou a encarnação. Sendo assim, concedo-te um prazo de cinco dias para que descubras a verdade. E tem cuidado, os crocodilos azuis estão com fome e nunca dormem.
Durante um bocado, Amenófis entregou-se a um jogo curioso: fechou e abriu várias vezes o olho bom. Finalmente ajuntou, martelando as palavras:
- Amon-Rá é o maior. Eu, a encarnação do divino Horus, sou Imperador do Alto, do Médio e do Baixo Egipto. A Farolina é a Imperatriz de todas as imperatrizes. O rio Nilo nasce no Paraíso. O boi Ápis é deus. O livro de Tots é indestrutível. O Egipto é a mais poderosa nação do Mundo. Não é assim?
- Absolutamente – respondeu o escriba. – Tudo quanto Vossa Majestade acaba de afirmar é verdade… sem margem para dúvidas. Assim foi dito, assim será escrito.
- Ainda bem – rematou o Faraó. – Agora põe-te a mexer. E não te esqueças do prazo: são quatro dias mais um, improrrogavelmente.
O Eleito do Sol, Arménio Vieira (1990)
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