terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Duelo

Quem está aí?
Nada.
De trás da estante onde dormem os livros esotéricos irrompe um pontiagudo sorriso branco que sussura assim: Matei-te!
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Três meses antes, Ernesto, poeta reformado, chegava quase ao fim da Rua do Anjo e preparava-se para virar à direita. Pensava já que uma das coisas que mais o fascinava na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva era precisamente o local onde se erguera, na artéria jugular da sua Bracara Augusta.
Ernesto amava a sua cidade como não poderia nem conseguiria amar outra. Aí nascera e crescera, aí tinha feito os seus grandes amigos, tinha sido numa daquelas saudosas tardes de jardim de Santa Bárbara ao domingo que se apaixonara pela sua esposa Etelvina. A Avenida da Liberdade, que testemunhara os primeiros passos dos seus rapazes, via-o agora a ele, poeta reformado, tentar caminhar prazeirosamente todas as manhãs por entre a afoita multidão i-podesca do século XXI.
Desistira da escrita há mais de dez anos por categoricamente considerar que o mundo ainda não estava preparado para entender uma metáfora. O mundo girava em torno de eufemismos, aliterações onomatopeícas e demasiadas perífrases. Sentir uma metáfora, compreendê-la na sua mais absoluta totalidade, só era possível com a respiração e isso ninguém que conhecesse era capaz de fazer. Quer dizer, talvez só uma pessoa soubesse compreendê-la, senti-la, talvez... bem, mas com esse senhor ele, Ernesto, não estava interessado em entabular qualquer tipo de conversa. Esse senhor dava corpo à face mais mercantilista da poesis, lucrava com Ela, era famoso por Ela, ensinava técnicas para chegar a Ela... pfff, um grande fanfarrão era o que esse senhor era, fanfarrão, arrogante e estúpido. Ernesto sentia os nervos a fervilhar eléctricos só de pensar nesse senhor. Por sorte, nesse momento, olhou o seu reflexo no vidro que separa o passeio da rua da sala de leitura do rés-do-chão e descortinou uma ruga revoltada já instalada no seu sobrolho. Ernesto, olha o teu coração, sentiu a doce voz da sua Etelvina.
A porta de entrada desenhava-se apelativa perante si. Ernesto despediu-se destes pensamentos ruins e abriu-a: à sua frente o largo balcão de informações, o sorriso cúmplice da jovem sentada em frente a um molho de fichas de inscrição e à sua esquerda os largos degraus de mármore que todos os dias conduzem tantas crianças ávidas e irrequietas à maravilhosa sala de leitura infanto-juvenil do primeiro piso.
Nesse momento, o carteiro tocava à campaínha da casa de Américo e o próprio levantou-se das suas leituras e foi atender. O subscrito era quadrado, alto e bege, de um tipo de papel duro e institucional. Royal School of Poetry & Arts? - leu. O que será que estes gajos querem comigo? - pensou. Por reconhecido mérito, blá blá blá, inúmeras publicações na área dos Estudos Poéticos, humm humm, autoridade académica de peso, ah pois é seus bifes, vimos por este meio solicitar um parecer, será que ainda ganho dinheiro com isto?, parecer de foro académico e tal, Os Dez Maiores Poetas Vivos de Portugal. Huuummmmm, ruminou Américo. E outra vez, coçando a barbicha, huuummmmm. Quando viu o seu nome, Perestello, de Souza Américo imediatamente a seguir à vírgula que sucedia a The Ten Greatest Living Portuguese Poets decidiu que ia aceder ao pedido dos ingleses custasse o que custasse. Bolas, era a Royal School! Seria de mau tom desiludir Sua Majestade.
Herberto Hélder, Vasco Graça-Moura, não esse não, António Ramos Rosa, Pedro Mexia, Manuel Alegre, Ana Luísa Amaral, não esse nem pensar... faltam quatro. Passadas duas horas já só faltavam três poetas, sendo que nos quatro dias seguintes apenas dois chegaram à lista que, neste ponto, só desejava ser concluída. Durante todo este processo de selecção, Américo continuou a repudiar a voz que teimava em insinuar-lhe repetidamente o mesmo nome. Não, esse não. Esse não vai parar à lista, era o que faltava!
Um mês após ter recebido aquele pedido de parecer marcado a vermelho com alguma urgência, Américo enviou à Royal School of Poetry & Arts o seu texto, academicamente justificado com cerca de oitenta notas de rodapé e mais de uma centena de autores citados, intitulado Os Nove Maiores Poetas Vivos de Portugal com um discreto asterisco remetendo para a página 118 uma justificação tão sucinta quão vaga sobre a impossibilidade de distinguir o décimo maior poeta português vivo. Que desculpassem mas ele, Professor Doutor Américo de Souza Perestello, Professor Catedrático da Universidade do Minho há dezenas de anos, não considera que tal poeta de facto exista. Sincere apologies for any inconvenience caused.
Os ingleses deram à estampa Greatest Living Poets e o capítulo reservado a Portugal, com muitas reticências entre parêntesis, foi assinado por Américo de Souza Perestello, PhD.
Quando a referida antologia dos mais importantes poetas da actualidade chegou à Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Ernesto encontrava-se sentado nas mesas do bar a ler o “Correio do Minho”. Viu o livro passar por si entalado entre os dedos da mão da Senhora Dona Conceição e o seu generoso peito que se encaminhavam para a sala de leitura térrea. Nesse espaço, o livro foi pousado numa das prateleiras metálicas que estão abrigadas pela indicação Destaques. E ali ficou destacado até Ernesto ganhar coragem de pegar nele, o que demorou cerca de três dias.
Escolheu uma hora de pouco movimento, quase às 20 horas quando a biblioteca fecha, e como quem não vai a nada sentou-se no sofá que o convidava há mais de setenta e duas horas mesmo em frente aos Destaques. Foi só estender o braço. Antes de o abrir pensou que estava diante de duas possibilidades: ou era reconhecido ou era ignorado. Ambas o aterrorizavam. Portugal, página 288, a ponta dos dedos movia-se ágil. Leu o artigo daquele grande fanfarrão da primeira à última letra de uma só vez. Por fim respirou. Voltou à lista da página 292, lá estavam os nove maiores poetas portugueses que podiam gozar da sua glória em vida. Ele não. Fechou o livro com estrondo. Voltou a abri-lo na página 292. Ele não. Tinha sido ignorado e acabara de descobrir que afinal queria ser reconhecido.
A revolta. Esse sentimento à partida olhado com desdém fez com que Ernesto se reerguesse Poeta daquele sofá. A terrível injustiça da qual acreditava ter sido vítima moveu as suas determinadas pernas em direcção ao tampo de madeira que evitava há anos. A folha de papel branco nem teve tempo de o intimidar e assim enebriado de génio e ânsia justiceira criou a mais bela ode do seu tempo, a Ode à Metáfora. Exausto, deixou que os seus braços repousassem cruzados no centro da mesa onde a transpirada fronte veio pousar triunfante.

3 comentários:

Catarina Cardoso disse...

hummmmmmmmmmmmmm parece-me que sei o que é isto!!!!!!

Qual foi o resultado?

Estava a pensar enquanto te lia que eu nunca conseguiria escrever algo semelhante. É o que distingue quem sabe escrever de quem gosta de escrever.
Gosto de escrever sobre coisas minhas, emoções, etc...mas nunca conseguiria fazer estas tuas proezas.
Nunca desistas. é um grande prazer ler o que escreves.

muitos beijinhos com saudades. fazes falta por aqui a abrir caminhos e deixando marquinhas nos corações dos teus amig@s.

Catarina disse...

Finalmenteeee... adorei!

GreenHouseSpecial disse...

Olá Minhokinha =)

Para ser sincero ainda não me tinha dedicado a ler... mas gostei muito, está bastante elaborado.

O reconhecimento global é uma questão de tempo... pois no teu circulo mais próximo não te faltam fãs (i-podescos ou não)!


Wish you the best***