quarta-feira, 7 de outubro de 2009

O Salto (IV)


21 e 22 de Fevereiro de 1974


A mala do carro que apertava os corpos dos três homens tremia em convulsões e quase se desmontava a caminho da liberdade. As amolgadelas na chapa em ponto de ferrugem e nos três joelhos, quatro ombros e um pé conviviam, alegremente e de bom grado, com três inspirados sorrisos. Ouviram do banco da frente dos passageiros: Cuidado, fronteira! – e paralisaram até as pestanas.
O carro estacou, passos cada vez mais distintos. Tomé recordou-se de ter já observado atentamente a biqueira duma bota que o pé de um Guarda Nacional Republicano ostentava glorioso, numa certa tarde ali pelos arredores do Parque Eduardo VII. Caramba! Aquilo no meio dos olhos deve doer, pensara fugazmente. Paralisado na mala, a escassos metros de Espanha, Tomé imaginou aquela biqueira de aço rebentar-lhe a boca, sentiu o seu sangue explodir em jorros, o barulho de um punho no olho, o corpo atirado a um canto, dias e dias sem dormir, obrigado a repetir a mesma história tantas vezes quantas a loucura permitisse, duas gotas de água a beber, outro soco na boca, ameaças vociferadas a conhaque rancoroso e voraz, rebento a puta da tua mulher, ouviste? Fodo-a toda e no fim rebento-lhe os cornos!
O restolhar das botas negras da autoridade na gravilha escura e áspera trouxe-o novamente ao aconchego asfixiante da mala onde se encontrava. Um ou dois passos separavam-no do homem que poderia muito bem conduzi-lo à morte. Suspendeu a respiração. Um alarme gritou na noite. Alguém chamava ao longe. O que é que o Meireles quer agora? Hã? Ah, o jantar está pronto. Diz ao gajo para não abrir a panela, nós já vamos. Não, aqui está tudo bem, vão só a Santiago de Compostela pagar uma promessa. Pode seguir! E com isto depositou uma pancada assertiva de mão aberta no centro da mala do carro, mesmo por cima do tímpano de Tomé. Começou a entreabir-se uma espécie de sorriso.
Os fugitivos souberam então distinguir a mudança de país: a estrada deslizava em teimosas utopias de um povo livre. As mais íntimas esperanças de cada um daqueles homens subitamente desfilavam perante os seus olhos, penetravam-lhes os músculos doridos, sentiam até o seu cheiro adocicado como quem está na primeira fila de uma abertura de estação da Victoria's Secret. Era quase carnal aquela sensação de clímax. Iriam finalmente ser livres, unir esforços e trazer a Revolução... salvar Portugal.
Já devidamente instalado no banco de trás da viatura, Tomé fechou os olhos ao acelarar estonteante das luzes dos lampiões da estrada. Embalou na segurança daquele momento e adormeceu profundamente. A porta do quarto abria-se num estrondo e vários homens rompiam com armas. Mãos atrás da cabeça já! No chão, no chão antes que te dê cabo dos cornos, jornalistazinha de merda. Gavetas remexidas e atiradas ao avesso, colchão da cama revirado primeiro e rasgado depois, as botas, aquelas botas negras de biqueira dura de aço em frente aos seus olhos, por cima da cabeça da sua mulher que chorava esmagada ao chão. O papel? Onde está o papel? O raio do papel, caralho! Queres que meta já um pontapé na boca da gaja? Queres? Conseguiu entrever um distinto Não no olhar em soluços da sua esposa. Também ela estava disposta a morrer pelo seu país. Ele amava-a ainda mais por isso. Tomé deixou de ouvir os gritos autoritários dos polícias, de ver o seu quarto violado e ensanguentado, deixou de sentir os pulsos amordaçados atrás das costas. Viu só o olhar guerreiro da sua mulher. Jamais nos vergaremos, jamais! A bota que repousava naquele ouvido delicado, como uma chuteira em cima da bola um minuto antes do início da partida, levantou-se, apontou certeira e desceu revoltada e em fúria em direcção à cabeça do seu amor.
Ao fechar os olhos de pânico acordou num sobressalto suado. Os companheiros olharam-no preocupados e então Tomé declarou: Vou para Itália! Não quero ficar em Paris.

3 comentários:

Unknown disse...

uau, ki susto!!!isto de ler minhokinha começa a ficar improprio para cardíacos. bali bali :D

Sarabudja disse...

Isto é fantástico.
Que cabecinha linda tens tu!

Diabalinha disse...

Menina: isto está a ficar excelente! Estás a conseguir recriar autênticos ambientes de fuga,interiores e exteriores, de cortar a respiração. Escreve mais, please...