quinta-feira, 1 de outubro de 2009

O Salto (III)


19 de Setembro de 2009 por 5 de Abril de 1976...

Ao contemplar as águas mansas do Adriático que embalavam Roseto Degli Abruzzi, Maria recordou-se de que sempre se sentira fascinada pelo mar, talvez porque nunca convivera com as marés quotidianamente para se habituar à sua presença. Crescera na Herdade da Cotovia, numa aldeia dos arredores de Tomar, filha e neta privilegiada duma família abastada de grandes proprietários de terras e desconhecendo, em absoluto e por longos anos, o real significado da palavra privação. Quando, em meados de 1975, a sua recém-casada mãe anunciou que estava grávida, o pai abriu uma garrafa do melhor champanhe da garrafeira brindando ao herdeiro que vinha a caminho. Afinal era uma herdeira mas quando a segurou nos seus frágeis dois kilos trezentas e quinze gramas, o seu pai imediatamente se apaixonou por aqueles olhos negros que piscavam numa curiosidade neo-natal de quem quer descobrir o mundo. A sua chegada foi comemorada com uma matança de porco, um verdadeiro arraial de churrascos de carnes e vinhos, baile até de madrugada, todos os vizinhos intimados a comparecer. A mãe, ainda débil, deitada na larga cama de lençóis de linho branco onde dera à luz, era a imagem mais simples e perfeita que podemos criar de paz e amor enquanto beijava com orgulho o rosto da sua menina.
Crescera reguila e irrequieta, criança que raramente via um desejo seu ser recusado e assim, com o passar dos anos, as suas eventuais necessidades tornaram-se pedidos e estes rapidamente se transformaram em caprichos.
Na adolescência não se apaixonou. Nenhuns olhos negros e fundos de mancebo forte a conquistaram, nenhum par de braços másculos a abraçou, não foi seduzida por qualquer tipo de lirismo, não passou uma única noite de verão suspirando o seu amor à janela. Faz muito bem – defendia o pai. Sabia que a fragilidade do seu império latifúndio era o facto de a sua primogénita ser uma mulher, logo algo penetrável à influência maléfica de um possível marido caçador de fortunas. O medo de entregar o mundo que tanto o fizera suar a um estranho para ver esse mesmo estranho fechá-lo na sua mochila e partir fazia com que o pai de Maria se divertisse e até encorajasse a postura teimosamente distante do amor que a filha insistia em adoptar.
Chegou a universidade: Coimbra. Cansada de ser protegida pelos muros que a sua família criara em torno de si (é para o teu próprio bem, querida), Maria esteve sempre na fila da frente de manifestações contra as propinas, contra os abusos de poder do Ministério da Educação, contra a generalizada apatia académica, contra a proibição do aborto, contra a proibição do uso de canabis com fins medicinais, contra o encerramento do Pratas, a tasca-sede dos estudantes militantes contra o sistema, estrategica e ironicamente situada nas costas da Faculdade de Direito, et caetera, et caetera... Maria era uma ideóloga utópica convicta, apaixonada pela luta das causas perdidas, viciada no confronto corporal histérico das grandes manifestações, saudosa do Maio de 68 que nunca vivera. Só poderia ter cursado Direito para, ao cabo de sete anos, deitar o diploma ao lixo. O mundo não precisava de mais um Excelentíssimo Senhor Doutor.
De Coimbra, e mesmo sem regressar à Herdade da Cotovia, viajou com um grupo de amigos ao som de Jimi Hendrix e Janis Joplin numa carrinha azul de caixa aberta pela Europa Central e nem mesmo quando já não tinham dinheiro para comer e suplicavam esmolas nas ruelas do Sacre Coeur, em Paris, nem mesmo aí Maria abriu o seu coração. Vasco, o amigo das reuniões clandestinas dos seus dezanove anos, eterno e secreto apaixonado, abria-lhe o seu velho manto para também ela se abrigar do frio e da noite junto a si, mas Maria ridicularizava-o, és um piegas, e corria pela chuva a rir atrás dumas sobras de restaurante.
Quis passar o seu trigésimo aniversário rodeada dos muros que sempre a protegeram do mundo e ali voltou, tão rota quão rica, como fez questão de gritar mal atravessou o portão da Herdade da Cotovia, para encontrar algo que não imaginara possível. Quer dizer, algo que nunca pensara que lhe pudesse acontecer. Tudo mudara. Esperava-a uma pálida e anémica mãe que só queria pousar um último beijo na sua testa antes de partir. Encostou as suas mãos longas, moles e já cadavéricas às bochechas duras e coradas da sua filha, aproximou a cara da jovem à sua branca e gretada boca, sussurando-lhe ao ouvido em sopro: Minha querida Maria, não passas de uma anónima da vida se não te entregares ao prazer, ao verdadeiro e mais belo prazer de realmente amares alguém. Entendes? Entendes o que te digo? Prometes que não morres sem Amar, filha? Prometes? Sorriu num rasgo doce e triste. Maria baixou a cara. Foram as últimas palavras conscientes da sua mãe antes dos dois dias de delírio pré-morte. Enfim descansou. E começou o grandioso tumulto de Maria.

7 comentários:

Sarabudja disse...

A mi é bu fan nº1!
Quero mais e mais d'"O Salto".
Ah Minhokinha, estou a adorar.
Beijos da sempre antenada neste blog.

Anónimo disse...

-;)

Continua, gosto muito!!!
Bjs

IM

GreenHouseSpecial disse...

É bom ver que a tua criatividade não pára... "O Salto" já é um sucesso!

Baci***

Unknown disse...

:D ki lindo. Obrigado pelo convite à leitura.

Anónimo disse...

Boa leitura. lindo

Anónimo disse...

Minhokinha: sabes que tenho imenso orgulho no que escreves. O «Salto» está a ficar excelente! Ainda por cima, com cenários que ambas conhecemos, simplesmente magníficos.

A tua admiradora e mais recente aluna (e forever fã)

* A «fulana» que te enviou um excerto do Lueji e tu não sabias quem era...

Por: Catarina Abreu disse...

Estava eu aqui a pensar em escrever uma coisa que nunca te disse e vi que há alguém que partilha o mesmo sentimento que o meu...

um imenso orgulho de ti, da tua escrita, a sincera crença que és grande e que vais ser ainda maior!

beijo de saudades