Apenas os faróis daquele táxi iluminavam as ruelas sombrias do Bairro Alto por onde a chuva já se tinha deitado e lânguida ainda escorria. Tomé acendeu um cigarro e olhou as casas cinzentas que, indiferentes e apáticas, se sucediam umas às outras a seu lado. O motorista ligou o auto-rádio e ambos puderam ouvir as notícias sobre os heróis de Portugal que, hercúleos, combatiam em África pela mais nobre defesa das Colónias Portuguesas do Ultramar contra os grupos independentistas africanos. País de merda, sussurrou Tomé entre duas passas nervosas. Enquanto a ponta do cigarro se reacendia, reparou que o taxista olhava atento para ele através do espelho retrovisor. Tinha o rosto redondo com alguns pelos desordenados, olhos praticamente semicerrados, boca descaída para a direita, cabelo ralo e cheiro a aguardente. Tu queres ver que já me saiu um taxista bufo? Era mesmo o que me faltava, pensou Tomé enquanto tentava afastar as vozes e imagens que teimosas bailavam um pas-de-deux terrível na sua mente. A sua mulher com o filho de ambos ao colo pedindo-lhe que não fosse, ele arrumando tudo apressadamente na mochila, olhando em interrogação cada canto da casa tentando antever qual o objecto que melhor o ajudaria a suportar as saudades quando estivesse longe... não podia pensar nisso agora, estava já tudo decidido, o tempo era de acção e não de reflexão. O filho ensonado e assustado esfregava um olho e começava a chorar, Pai, paizinho... Não queria ouvir nada daquilo, não podia. Abriu a porta da rua perante a mulher hirta e incrédula, as lágrimas escorriam-lhe até ao peito desenhando-lhe a pele de fios de orvalho mudo, beijou-lhe os ombros com o último olhar que lhe lançou, abraçou-a toda dentro de si e partiu. Sem olhar para trás.
As notícias radiofónicas deram lugar à música que fez Tomé sorrir e recuperar algum ânimo. “Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho, a melodia que iria vencer o Festival da Canção desse ano. Tomé ainda não sabia, só trauteava baixinho Quis saber quem sou, o que faço aqui, quem me abandonou, de quem me esqueci....
A Estação de Santa Apolónia poucos minutos antes da meia noite assemelhava-se a uma casa de fados da Mouraria ao fechar: uma luz fúnebre de 40w, porta encostada, menos de meia dúzia de pessoas a vaguear pelos cantos, pontas de cigarros esmagadas com fina biqueira de sapato, o cheiro quente que permanece na sala de espectáculos segundos após a cortina se fechar. Tomé avançou até à janelinha de grades destinada ao atendimento público e pediu um bilhete para Vilar Formoso no combóio da meia-noite. Ao entrar na carruagem número 2, que imediatamente arrancou, Tomé viu Carlos sentado numa ponta distraidamente lendo um livro e pressentiu que Gaspar estaria na seguinte. Viajaram pela Linha da Beira Alta na suposta ignorância de quem eram e do que ali faziam. Cinco horas depois desceram no apeadeiro da Aldeia de S. Sebastião e caminharam individualmente em direcção à mata escura de pinheiros altos. Piscaram as luzes duns faróis escondidos por entre o cheiro a eucalipto. Os três homens entraram na mala do carro. Tomé foi o último e antes de a fechar conseguiu ver que a lua crescente sorria para si.
4 comentários:
Bravo!
Sempre atenta, Sarabudja. Obrigada!:)
Está aqui a criar-se um enredo...nem imaginas.
Beijinhos*
Olá Minhokinha -;)
Este regresso está a ser em grande!!!Estou a gostar e muito.
Para mim, " ... conseguiu ver que a lua crescente sorria para si".
Demais;)
Continua
Bjs
Quero mais "Salto". Quero mais "Salto"!
Vá lá, só um bocadinho.
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