quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Maria Ramantxada XI

O agente Ederlindo da Polícia Nacional era a força da lei mais próxima da escada de metal que conduzia ao telhado da reitoria onde Dú prosseguia o seu mea culpa. Que ninguém lhe dava valor, que se chegavam a passar dias em que nem 20 escudinhos lucrava, que todos o consideravam um incompetente, um lixo ambulante, o parasita-mor de uma sociedade já de si tendencialmente parasitária, que nunca conhecera o pai, que não tinha onde cair morto… nem vivo, basicamente, não tinha onde cair… et caetera, et caetera (o seu discurso lamecho-romancezinho Danielle Steel ia amolecendo alguns dos presentes e fazendo saltar uma ou outra lágrima entre as senhoras mais emocionalmente vulneráveis)… que muitos o tinham por inculto mas que não, que era um grande apaixonado pelas letras, louvores à Claridade, a Teixeira de Sousa, Oswaldo Osório e até a Fátima Bettencourt (para quem aproveitava a ocasião e mandava mantenhas) mas que, entre todos, não conseguia deixar de reconhecer a grandiosidade de Pessoa. E nesse dia, tremeu a voz e pareceu limpar um ranhozito que descia pela narina castanha, nesse dia em que o poeta completaria 120 anos, decidira levar a cabo algo glorioso, algo memorável, não sabia bem o quê mas algo que não fosse jamais olvidado em cem anos, algo que inscreveria o seu nome no panteão dos imortais. E então viu-a. A culpa era dela que gostava de abanar as curvas pelas ruas como se não soubesse que era boa, feita mulher-volúpia que deixa os homens entregues às suas mais primitivas fantasias sexuais, e por isso mais belas. Por acaso a porta do prédio estava aberta, os vizinhos tinham aquela mania de passar os dias sentados em banquinhos coxos de madeira, com que ocupavam o passeio da Rua das Flores, e a beber cervejas desde as dez horas da manhã. Ora, já seriam umas sete e tal da noite quando ele passou ali, a vizinhança já tropeçava e não via ninguém, a própria D. Maria, quando espreitou pelo buraquinho da porta, nunca desconfiou. Abriu sem hesitar e enquanto se virava para a cozinha à procura de umas sobras de comida… um braço à volta do pescoço, um clic, arrastou-a para a cama para dar um ar de crime passional e aí divertiu-se a cortá-la toda. Minuciosamente. Só assim ficaria na história. Saiu já passava das quatro enquanto o prédio dormia e foi-se encostar, como de costume, à porta do Café Central.
Já ninguém chorava na assistência. O Dú não era nenhum coitadinho, era sim um criminoso sanguinário! E estava ali à frente de todos a assumir a autoria daquele homicídio horrendo, o mais espectacularmente visceral de que havia memória na Cidade da Praia. Uma voz anónima grita: Ó Ederlindo, então tu és polícia para quê? Estás aí mesmo a jeito e não fazes nada? Ederlindo, um dos poucos agentes já redondinhos da idade, bigode à português e mania de mandar fazer, saiu do transe em que se encontrava, olhou para cima onde Dú agora ria escancarada e escandalosamente mostrando com orgulho o meio dente da frente enquanto aterrorizava a população, e a primeira coisa que fez foi agarrar-se ao walkie talkie e pedir backup. Da rua ao lado, do supermercado Felicidade, chegam mais três agentes e os quatro sobem ao telhado em fila indiana a fim de prender Dú que não oferece a mínima resistência.

O caminho que o algemado percorre até à carrinha transforma-se numa tirada verdadeiramente hollywoodesca que ficará eternamente gravada na memória dos presentes em modo slow motion. Dú, de braços bem levantados a urrar gargalhadas doentias, quase tropeça nas suas vestes rotas mas nem por isso perde a compostura basofa qb de man of the moment; quatro agentes da Polícia Nacional em seu redor a abrir caminho e a afastar a população que, entretanto, já o queria desfazer das formas mais cruéis. Alguns exemplos de mimos atirados a Dú naquele caminho que viria a ser noticiado na imprensa como Dead Man Walking: N’ta matou (Eu Mato-te!); N’ta trou odjo (Tiro-te os olhos!); N’ta dou cu faca (Espeto-te uma facada!)… and so on, and so on. Nada disto assustava Dú que quanta mais injuria sofria, mais se divertia com a situação. Finalmente entrou na carrinha da polícia, acomodou-se na parte de trás, baixou as calças e colou as bochechas do seu rabo flácido e descaído ao vidro enquanto virava a cabeça para todos e deitava a língua de fora.

Levado a tribunal, julgado, culpado e encarcerado. Deveras comentado na imprensa, discutido nos cafés, invejado pelos pequenos delinquentes e temido pelas boas famílias. Com este homicídio Dú conseguiu definitivamente elevar o seu status: de quase-anónimo maltrapilho desgraçado passou a maior criminoso crioulo de sempre! Não é uma subida muito favorável, mas reconheçamos que é uma subida.

Os amigos e conhecidos da D. Maria Ramantxada sentiram a sua morte vingada e lentamente as suas vidas voltaram ao que sempre foram: aquele formigueiro tão praiense movido a curiosidade exacerbada em querer saber da vida dos outros.


A alma de Maria nunca descansou em paz.

6 comentários:

Anónimo disse...

Oi Minhokinha,

Pena que é o fim. Espero que esteja outra por vir.

Pobre Du, com um carrasco como advogado que nem alegou insanidade mental

Obrigado por todos os capítulos. Valeu esperar.

Minhokinha disse...

Bom dia Sams e obrigada pelo apoio!

O Dú não teve a sorte de encontrar um bom advogado, os desgraçados ficam com as sobras e todos o queriam ver atrás das grades.

Veremos se é o fim mesmo... lembras-te no final dos Pesadelos em Elm Street? O Freddie tinha morrido mas de repente via-se uma mão tenebrosa a rasgar a terra onde tinha sido enterrado... :)

Beijocas da Minhokinha*

Anónimo disse...

Oh... apesar de ter a curiosidade saciada, não consigo deixar de ter pena de ter chegado ao fim. à ânsia de ler o próximo capítulo, segue-se a de ler uma nova história...

Obrigada... sódadi di bo!

Por: Catarina Abreu disse...

Agora que todas as curiosidades foram satisfeitas no que concerne à Maria Ramantxada, resta contnuares com a descrição (caricatura) do bracarense.

Saudades.

Unknown disse...

:) nao espera essa do Du.

A caricatura esta perfeita. ontem mesmo la no Cafe Central, era ele igualzinho, fedendo a chole e com aquele ar de quem eh louco mas nem tanto.

sodadi bo

bjs

Anónimo disse...

A alma de Maria nunca descansou em paz.... Eu sei que ela vai voltar!
Pleaseeeeeeeee! Gato Esteves.