domingo, 6 de julho de 2008

Maria Ramantxada IV

Dirce levantava-se todos os dias pontualmente às 5h45. Erguia-se da esteira cautelosamente para não acordar o marido, enrolava o longo lenço verde na cabeça deixando só um pouco de cabelo descoberto, vestia uma túnica, garrafão de plástico na mão, abria a porta sem fazer o mínimo ruído, deixava-a encostada para não bater e saía em direcção ao chafariz. O chafariz do bairro periférico onde morava, Lém-Cachorro, era paragem obrigatória para todas as mães de família a partir das primeiras horas da manhã. Sem água canalizada, teriam de ir buscar os litros necessários para a lida diária. Garrafão equilibrado na cabeça, mão na cinta, voltavam para casa, acordavam os maridos e os filhos, faziam o pequeno-almoço, deixavam as crianças a alguma velha que olhasse por elas, juntamente com uma embalagem de papas para bebé e uma peça de fruta embrulhadas num saco de supermercado, e partiam para o trabalho. Trabalhavam na cidade para as senhoras que tinham dinheiro, dedicavam dez horas diárias à casa e à família de outra pessoa, cozinhavam, limpavam, lavavam, passavam a ferro, cuidavam e ensinavam as primeiras palavras aos seus filhos por dois tostões mensais. Ao final do dia, cansadas das vidas dos outros, voltavam às suas, recolhiam ao bairro, iam buscar a prole que já nem sentia a sua falta, preparavam o seu jantar, arrumavam a sua cozinha, viam a novela e caíam de novo na esteira. Dirce era uma destas mulheres-coragem, mulher teimosa que não quebrava nem cedia. Todos os dias, sem falhar, Dirce chegava pontualmente às 8 horas da manhã à Rua dos Prazeres. Abria a porta e encontrava a D. Maria, já pronta para sair, a tomar o pequeno-almoço.

Aquela manhã de 14 de Junho não era diferente: chave a rodar na fechadura, a sala iluminada pelo sol, na banca da cozinha alguma loiça à espera de ser lavada… e D. Maria? Por que não estava sentada à mesa a ver as notícias da RTP África e a comer torradas com mel? Dirce pensou que talvez a senhora tivesse adormecido. Procurou não fazer barulho enquanto organizava a loiça para lavar. A atmosfera da casa estava pesada, Dirce arrepiou-se e não compreendeu porquê. As janelas estavam fechadas, nem uma ponta de corrente de ar. Enquanto misturava o detergente na bacia com água, sentia alguém a mirá-la fixamente. Voltava-se para trás e nada, ninguém. Mas alguém a observava, ela sentia que alguém a rodeava, praticamente lhe passava os braços pelo pescoço e quase a esganava. O que era aquilo? Decidiu parar com a lavagem da loiça e percorrer todas as divisões da casa, certificar-se de que a D. Maria dormia de facto. Saiu da cozinha, atravessou a sala, espreitou a casa de banho à esquerda, nada, tudo na mesma. Continuou a caminhar pelo corredor em direcção aos quartos. Engoliu em seco. Um peso no coração, um aperto no peito, declarada falta de ar. O quarto de visitas estava exactamente como o tinha deixado na tarde anterior, até a tábua de passar a ferro ainda estava montada. Só faltava o quarto da senhora, mas Dirce agora sentia que algo definitivamente não estava bem. Teve medo de seguir em frente. Parou diante da maçaneta. Ia espreitar de mansinho, a senhora que desculpasse mas ela não descansava enquanto não visse com os seus olhos que estava tudo bem. Rodou a maçaneta doirada, a porta abriu lentamente com um contínuo mas quase imperceptível gemido de suspense semelhante aos imortalizados por Hitchcock.

A claridade que inundava o quarto era tão berrante que, num primeiro segundo, cegou a jovem criadita. Levou a mão aos olhos tentando proteger-se da luz feroz e quando os voltou a abrir

A boca escancarou

O coração esbugalhou

O corpo petrificou

e Dirce, inútil, caiu no chão, peito para o céu, os olhos completamente abertos quão inertes, a boca em ó e uma expressão de verdadeiro terror que lhe perpassava o corpo hirto.

Em cima da cama, pedaços de Maria. As pernas simetricamente dispostas em V, salientando-se o sexo totalmente carbonizado, um braço esquecido debaixo duma almofada carmesim, o tronco nu e esventrado por entre os lençóis ao centro da cama e a cabeça, negra e esmurrada como uma bola de futebol aos noventa minutos, tinha caído da cama e rolado até ao banco da cómoda onde Maria se costumava maquilhar.

Duas mulheres mortas num quarto espirrado a vermelho-vivo!

9 comentários:

Anónimo disse...

Fogo, minhokinha, isso não se faz! Posta já o próximo capítulo!!!!!

Unknown disse...

Oi Minhokinha linda, que tragédia !!! Fiquei assustada, a sério -;) Faço minhas as palavras da catarina(tia babada), posta já o próximo!!!
-;)

Anónimo disse...

Uma catarina a concordar com outra catarina. várias expressões faciais depois: "Porra, matas-te a Ramantxada!".

Só pra dizer que adoro a Maria Ramantxada (qual Lost???) e que quero saber o que a senhora fez pra merecer tal destino!

Adoro a forma como descreves "the cape verdean way of being", como a captas e a concretizas. Continua assim que és o meu orgulho!

Anónimo disse...

Miga, estou a adorar o toque de suspense. Acho que a Maria Ramantxada está a ficar forte em termos de intriga...só não gostei muito da comparação com a bola de futebol. Agora, o episódio está forte...estás a conseguir criar aquele bichinho da vontade de ler mais e mais...

A tua amiga que gosta do romance Lueji de Pepetela

Anónimo disse...

Who Killed Maria Ramatxada - the hidden Pessoa lover?

Ba

Minhokinha disse...

Obrigada pela persistência, minhas queridas. Pois é, a Ramantxada foi desta para melhor e da forma mais violenta que se possa imaginar! As questões pululam nas nossas mentes: quem? porquê? o-que-fez-a-desgraçada-da-mulher-para-merecer-tal-façanha? regressará Maria dos confins do sobrenatural?

Ah ah... só o autor sabe, ou desconfia! Aos poucos, piano e adagio vamos perceber o que de facto aconteceu!

Cumprimentos herbívoros da Minhoka*

Anónimo disse...

Querida Minhokinha, sempre que dá ainda venho aqui espiar e me deliciar com as histórias de Maria Ramantxada! Beijos
Pim

GreenHouseSpecial disse...

O Pânico! O Horror!

A intriga começou - a imagem mental produzida pela leitura é horrível.

Como pode uma minhokinha ;) lembrar-se de sexos carbonizados e cabeças a rolar até ao banco da cómoda... uau! (qual CSI?)
Intenso, muito bom mesmo!

Tou com a Catarina, quando diz:
"Adoro a forma como descreves "the cape verdean way of being", como a captas e a concretizas."

Embora nunca tenha estado ai, consigo imaginar graças ás tuas brilhantes descrições... keep it workin'

... and keep it green =)

Beijocas***

Minhokinha disse...

Caro AKA, como o senhor em tempos bem notou, a minhokinha tem cara de anjo mas pensamentos deveras perversos e macabros! Muito mais se esconde por detrás deste sorriso! :) Ainda bem que te faço viajar até à Cidade da Praia, só por isso a escrita (criativa?) ja recompensa!

Querida Pim, ainda bem que a Ramantxada te faz voltar sempre! Podias era voltar a Cabo Verde :)

Beijocas da Minhoka*