segunda-feira, 30 de junho de 2008

Maria Regateira ou Maria Ramantxada III

On that particular morning, 13 de Junho, sexta-feira, Maria acordou num súbito soluço convulsionado como se só naquele segundo em que despertava para o dia conseguisse respirar. Antes de ganhar consciência do seu quarto, antes de fazer um pequeno esforço que a transportasse de volta ao onírico e a fizesse compreender o pesadelo de que acabara de sair, antes sequer de conseguir desembaraçar completamente as suas pestanas arrebitadas da viscosa remela teimosa que as assaltava, Maria pensou em Pessoa. Dia de Pessoa. Arqueou ligeiramente a sobrancelha direita, movimento físico-cerebral quase imperceptível que a levava a percorrer os gavetões da sua memória, os seus personal x-files, e quando deixou soltar o primeiro bafo da manhã de marca papéis de música declarou “1888-2008: 120 anos. Se Pessoa fosse vivo fazia 120 anos.”
Acariciada pelo véu turvo e quente do poeta, vagueando já sonhadora pelos seus versos, Maria encurtou a distância para o xixi matinal enquanto levantava o braço esquerdo e, em jeito de hino, entoava “Ó mar salgado, quanto do teu sal, são lágrimas de Portugal” ou então, de queixo levantado e mão na anca, “O poeta é um fingidor, finge tão completamente, que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente.” Com isto batia sonoramente a mão no peito e com quanta mais força batia maior era a suposta dor do poeta sentida por si.
Naquela manhã especial de 13 de Junho, sexta-feira, dia de Pessoa, nem uma nuvem no céu de Santiago, um sol claro e juvenil, Maria cantarolava no chuveiro, recitava Pessoa-Caeiro-Reis-Campos, misturava os versos num êxtase tal que decidiu imediatamente coroar-se com uma espuma de banho única que guardava no fundo do armário azul desbotado da casa de banho e que reservava exclusivamente para as noites quentes e especiais de prática selvagem de hipismo na rede vermelha. Sentia-se mais atraente quando emergia daquela espuma red mint passion que lhe trouxera uma amiga de Lisboa. Hoje, Maria Regateira iria dedicar o seu brio ao mais notável poeta português.
Cheirosa de volúpia, decidiu-se, perante o roupeiro aberto, pelo vestido de roda escarlate que muito lhe favorecia o decote. Lingerie a condizer, tamanco branco, três ou quatro espirros de gel ultra-mega-não-há-melhor-fixante-rasca na pala, grossas argolas douradas, uma dezena de pulseiras prateadas a tilintar no pulso esquerdo, carteira de couro preta na axila de onde espreitavam uns pelos escuros e… 8h15 pontuais: o tacão beija o passeio. Ora muitos bons dias! Bons dias, como tem passado? Bons dias D. Lurdes, bons dias senhor Inácio!
Não, não iria ao mercado enfiar-se no meio dos legumes e água choca dos peixes e frutas nas bacias nas cabeças das vendedoras e moscas a sobrevoar contemplativamente a carne no dia de Pessoa. Se o poeta fosse vivo faria 120 anos, era um feito e ela teria de o comemorar com alguém. Mas quem? Quem seria “Louco, sim louco, porque quis grandeza” para a acompanhar num prato de catchupa refogada e meia de leite a recitar poesia modernista e a relembrar Orpheu? Uma luz azul brilhante. Santos-Lima, professor-catedrático-topo-de-pós-doutoramento-Honoris-Causa-em-Sapiência-que-não-deixa-margem-para-dúvida, seu amigo da adolescência no Mindelo. A esta hora deveria estar a preparar-se para sair de casa… pois bem, surpreendê-lo-ia à porta.
Santos-Lima era famoso no meio académico pelas suas manias: mania de falar sempre e impreterivelmente um português douto, imaculado e vernáculo; mania de pronunciar distintamente ca-da-sí-la-ba-de-ca-da-pa-la-vra; mania de, por tudo e por nada, resgatar os seus conhecimentos de história da língua portuguesa e oferecer aos seus interlocutores, fossem eles quem fossem, verdadeiras pérolas de erudição tais como “orelha a arder? Disse orelha? Saiba o senhor / a senhorita / o jovem que o vocábulo orelha percorreu um longo caminho desde o latim até aos nossos dias (loooooooongo caminho, sublinhava): desde aurecla, orecla até orelha. É interessante, deveras interessante, rematava com o seu já mais do que satirizado chavão. Santos-Lima, alto, magro e sempre de óculos encavalitados no nariz, não confiava em ninguém porque acreditava piamente no terror psicológico propagado tão eficazmente pelos fellow americans. Há máquinas, repetia, por todo o lado, máquinas de filmar, fotografar, microfones, de tudo por todo o lado. Eles sabem tudo. Eu nunca paro a conversar na rua com ninguém porque já sei que, no mesmo instante, a minha conversa está a ser ouvida, em dolby surround, na CIA. São piores do que a PIDE, a sério que são! Sobretudo esses Peace Corps que andam aí supostamente a ajudar quem precisa… pff, máscaras, vis máscaras! Fazem-se de salvadores da pátria, essa mania ignóbil de todos os americanos que ninguém lhes consegue tirar, e andam a espiar todos dos mais ínfimos recantos: das árvores, dos rochedos, das casas abandonadas, de todo o lado, de todos os cantos e becos desta cidade!
Assim, nem na Dona Eneida de Jesus, velha governanta lá de casa que o viu nascer, ele confiava. Há uns dez anos começara a desenvolver a teoria de que a senhora só poderia ser uma espia infiltrada da CIA desde a sua nascença para o vigiar porque a CIA, claro está, tinha informações ultra-secretas que lhes permitia afiançar, sem margem para dúvidas, onde e quando nasceriam os grandes pensadores do século e ele, Santos-Lima, era, nas suas palavras, um notável ser cogitante.
Nessa manhã, como sempre, o professor fez de conta que tomou o pequeno-almoço atenciosamente (ou maldosamente?) preparado por Dona Eneida de Jesus. Saquinho de plástico escondido entre as pernas, cada dentada no pão conduzida pela mão muito discretamente até ao saco, dois pães com queijo já lá vão, leite não bebo que não tolero a lactose, quantas vezes já lhe disse, Dona Eneida de Jesus? Deixe-me ir à minha vida que já estou atrasado!
Morto de fome, ansioso por trincar qualquer coisa com prazer, abriu o portão verde da sua casa estrategicamente construída ao lado da Igreja de Nossa Senhora Nos Acuda a Todos e a primeira coisa que sentiu foi um cheiro intenso a sexo devasso. Virou a cara e viu-a. Maria Regateira, encostada ao muro bege, perna direita alçada e pé apoiado na parede, sorriso endiabrado de catraia descarada, a roda escarlate do vestido a compor o quadro da tentação. Santos-Lima, estou jeitosa? Mais do que é costume? Arranjei-me para o Pessoa, não sabes que dia é hoje? 13 de Junho! 13 de Junho, homem! Anda daí, vamos comer uma catchupa à Rosa. Não, não digas nada disso (coloca o dedo indicador com dois anéis de ouro barato nos lábios do amigo), a Rosa é de confiança. Sabes bem que não admite americanos lá no restaurante!

4 comentários:

Anónimo disse...

Ana,

Nem sabe o quanto me divirto com as crónicas da Maria Ramantxada (já agora- Regateira é a tradução ao pé da letra?)

O Santos Lima é uma mais valia para o enredo!

Ansiosa pelos próximos episódios

Catarina Cardoso

Minhokinha disse...

Querida Catarina,

obrigada pela força! O Santos-Lima nem seuquer estava previsto mas, de repente, atacou a narradora com um golpe certeiro e sem ela dar por isso. Prometo continuar a surpreender... e brevemente!:)

Abraços da Minhokinha*

Anónimo disse...

Menina...a descrição do Santos Lima bate mesmo certo!!!!! Estou a gostar de uma Ramantxada que toma banhos de volúpia lembrando Pessoa...além do mais, acho que essa loucura por Fernando Pessoa é também uma parte de ti...a Maria Ramantxada é um heterónimo teu (só) sobre Fernando Pessoa. Acho até que a poderias transformar num heterónimo que repensa Pessoa...pensa no assunto.

Beijinhos

Amiga que gosta do Lueji de Pepetela

Anónimo disse...

Muito culta esta nossa regateira, deveras culta... Tens um armário azul desbotado lá em casa?:)

Gina