Começo pelos amigos e rejeito os lugares-comuns: não são os que estão sempre lá, muitas das vezes encontram-se a milhares de quilómetros de distância no espaço e também no tempo; não são os que acenam assertivamente com ar complacente, num misto de empatia e marcada distância, porque esses podem estar mesmo à nossa frente e mesmo assim insistirem em não nos (re)conhecer; não são os que telefonam sempre que querem sair à noite. Esses são os outros. O verdadeiro amigo, pessoa única, eterna e intransmissível, possui na sua essência o fino e apurado instinto de nos resgatar no instante em que mergulhamos em profunda queda livre.
Os imprevistos normalmente aborrecem-nos. Há quem fique triste quando acontecem, não gostam de sentir que a rotina lhes escapa por entre os dedos. E há igualmente quem fique triste quando se apercebe que é o causador do imprevisto de alguém a quem quer bem. No momento em que acontecem a nossa primeira reacção é, normalmente, encará-los com um considerável grau de desconfiança. Afinal, retiram-nos do curso que pensávamos estar a seguir e que naturalmente acreditávamos ser o mais indicado. A primeira propriedade inerente ao imprevisto é o factor surpresa...tive um imprevisto, dizemos logo a correr, tive um imprevisto e não pude a) comparecer a horas à reunião de trabalho; b) encontrar um cliente; c) passar numa festa de amigos. Tanto faz. O imprevisto calhou-me, estou sob o seu efeito, a partir do momento em que se instala reina a anarquia. Eu deixo de ser eu na ordem que eu desenhei para mim. Aconteceu-me um imprevisto, não estão a ver? Pois aconteceu e ainda vão acontecer infinitamente mais. O poder do imprevisto rejuvenesce a cada momento que passa, oferece-nos uma nova possibilidade de visão, uma perspectiva-outra. Afinal, que mais provas buscamos da generosidade da Natureza?
O dito pelo não dito é curioso. Primeiro diz-se uma coisa, depois diz-se outra. Apresentamo-nos com a mesma cara quando o fazemos e esse pormenor por si só torna o dito pelo não dito numa coisa insuportável para quem o ouve. Sejamos honestos: o nosso peito enche-se de uma estranha convicção quer quando o condenamos quer quando o praticamos. O que levará as pessoas a contradizerem-se? Flutuantes estados de alma? Inata multiplicidade do ser humano? Volubilidade? Não sei... Os portões que encarceraram o eu durante séculos abriram-se em par... e todos fugiram de lá de dentro a correr.
Os outros são carracinhas que vão saltitando de dorso em dorso sedentas de sangue. A metáfora não é arbitrária, se pensarmos bem o modus operandi do outro e do bicho sugador são em tudo semelhantes: ou chegam não se sabe bem de onde ou são apresentados por outro companheiro, imaginemos a pulga, e com uma leveza graciosa instalam-se e começam a chupar o nosso sangue. Se ninguém reparar no continuado processo de sucção, são capazes de estar naquilo semanas e semanas e semanas a fio. O outro, tal como a carraça, gosta de escolher o preciso local onde o sangue galopa com um fervor vermelho-vivo, fareja os pontos mais sensíveis e empenha-se em sugar o mais que consegue, exponenciando assim a sua própria energia e debilitando a do hospedeiro. O hospedeiro nem se apercebe que está a ser literalmente, em sentido figurado e novamente literalmente, comido pelo outro enquanto lhe oferece um luminoso sorriso de simpativa e jovialidade.
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