quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Os 93 da Avó Irene

À minha querida avó Irene, que me ensinou a ouvir e a contar histórias.

Sempre que falava nos velhos tempos a avó ficava com aquele brilho especial nos olhos. Levantava o queixo, fitava um horizonte e deixava discorrer as lembranças ao sabor das palavras vividas. Inês gostava muito de ouvir falar nesses tempos, deixava-se embalar nas histórias da avó e nem se incomodava se ela as repetisse. (...)
- O pai da avó era professor? – admirou-se a neta.
- Era um grande professor primário, muito respeitado por todos. Se lá fores hoje a Cabeçudos vês uma placa de homenagem dos alunos no cemitério e uma rua com o nome dele: Rua Professor Rocha Pinheiro. Era um bom professor e queria que a gente aprendesse. A canalha toda tinha de saber tudo na pontinha da língua muito direitinho: os rios, os caminhos-de-ferro, as contas… tudo tudo tudo. Como eu era filha, e ele queria dar o exemplo, castigava-me nas aulas e não tinha pena nenhuma de mim. Era muito rigoroso, sabes? Queria-me educar bem e não permitia faltas de respeito. Olha, se íamos comer a algum lado com alguém de fora ele dizia-me sempre “Irene, não vais comer muito. Tiras um pouco para o prato só para não teres fome mas não comes até estares satisfeita. Parece mal uma menina comer demasiado.” Eu obedecia, claro, mas muita vez quis comer mais. Olhava para ele assim como quem pede e ele fazia um gesto com a mão, sem ninguém ver, que queria dizer “Não podes comer mais.” Era assim, que queres? Naquele tempo era assim.
Olha, doutra vez, um dia, lembro-me como se fosse hoje, fui ver os livros que o meu pai guardava em casa num armarinho que tinha para lá. Peguei num e pus-me a lê-lo às escondidas. Subia-se assim uns degrauzinhos e eu punha-me lá em cima encolhida num canto a ler. Ai como é que se chamava o livro? A Morte de Sultão… seria? Não, não era bem assim… Daqui por um bocado já me lembro. O livro era triste, já nem sei bem do que falava, o que tinha lá escrito, só sei que me punha triste. Às vezes o que a gente lê mete-se na cabeça, a gente fica estranha só das coisas que lemos nos livros. Eu, olha, deixei de comer, andava com uma carica que mais parecia um passarinho molhado, triste triste que não se via ponta de alegria em mim. Ai como é que se chamava o livro? Está-me mesmo debaixo da língua. Bem, adiante, passados uns dias, o meu pai foi dar comigo lá em cima das escadinhas a ler. Perguntou-me “O que é isso que estás a ler, Irene?” e eu mostrei-lhe. Ele pegou no livro, viu qual era, espetou-me duas grandes bofetadas na cara, pas pas, e disse: “Tu não voltas a ler estes livros, ouviste Irene? Não são para a tua idade. Queres ler, lê os livros da escola.” A partir desse dia fechou o armarinho com o aloquete e eu não pude ler mais nada.
Já sei, já sei o nome do livro que estava a ler! Era “Sultão acha-se à morte”, era assim que se chamava. É mesmo isso: “Sultão acha-se à morte”! O que é que eu estava a dizer? Ah, já me lembro, fechou o armário com o aloquete, pois foi. Foi pena. E olha que ele tinha lá bons livros, eu até podia ter lido os do Camilo Castelo Branco e tudo!
Inês não fazia a menor ideia de quem seria esse Camilo, só tentava imaginar a avó a levar dois grandes sopapos na cara.

in A história da Irene (2007)