quinta-feira, 26 de fevereiro de 2009

Este cheiro não é meu!

Eram quase quatro da manhã quando Fonseca desligou o computador. Quase sem fazer o menor som, instalou-se de barriga para cima ao lado da esposa que, pensava, dormia na paz dos anjos. Mal fechou os olhos foi assaltado: os noventa e sete quilos da senhora mais vermelho sexy mais rendas mais perfume de rosas montaram o esqueleto amarelo raquítico que segurava o bigodinho espremido de Fonseca e, em jeito de louca, quase esmagando o desgraçado, ordenou: “vai, me possui! Me espanca a bunda como se eu fosse um cavalo que eu vou-te montar como se fosses uma égua deslavada e sem vergonha!” E começou a movimentar-se frenética qual rapazinho de dois anos em cima dum pónei de plástico. “Ai, ai, ai” – gemia teatral.
O pobre homem, perante aquele espectáculo verdadeiramente kafkiano, mingou. Aterrorizou-se de tal forma que começou a tossir, o catarro a querer sair, tentou levar a mão ao coração em sinal de percepção de ataque cardíaco iminente, quando a Monstra (ai, ai, ai), ainda a cavalgar, tomou-lhe os pulsos, ganhou algum balanço e chegou-se consideravelmente à frente sentando-se redonda em cima da cara dele. Se Fonseca pensava em falar podia esquecer, pois a mulher já se esfregava toda no seu nariz adunco, bradava impropérios e ordenava actos sexuais que para si eram autênticos mitos só possíveis em canais de televisão da especialidade. Em estado de absoluta e forçada mudez esperneou num claro sinal de falta de ar e Ricardina interpretou o gesto como prova conclusiva de prazer. Continuo soberba na cama, pensou, este enfezado já não vai a mais lado nenhum com essas vagabundas.
Desmontou a presa, que suspirou de alívio indo imediatamente beber água fresca, e passeou-se em frente ao espelho contemplando as suas rendas e as suas formas redondas com orgulho e vaidade de adolescente iludida. Por fim adormeceram lado a lado.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Este cheiro não é meu!

II

Longas semanas passaram sem que Dona Ricardina sentisse a ausência do marido em casa, bastava-lhe estar à janela feita Carochinha à espera do João Ratão. No entanto, numa certa tarde, não sabia explicar porquê, a senhora sentiu uma espécie de aperto no peito. Levou a mão papuda de anéis de ouro ao decote pomposo, soltou um Ai-Minha-Nossa-Senhora-da-Aparecida e virou a cabeça para trás olhando o corredor vazio e silencioso. Nesse momento, a desconfiança, qual pulguinha irrequieta e impossível de apanhar, apoderou-se de si e peremptoriamente abandonou a janela. Pé ante pé dirigiu-se à porta fechada do escritório onde encostou o ouvido. Nada. Foi buscar um copo de vidro à cozinha para o colocar entre a sua orelha e a porta, como tinha visto numa novela, a fim de captar algum som. Nem um pio. Não conseguia explicar a inquietação que sentia, uma espécie de tremor subia-lhe pelas pernas, um rubor instantâneo salpicava-lhe as bochechas rechonchudas. O Fonseca tem uma amante, só pode ser!
Quando se sentaram à mesa para jantar, naquele silêncio sepulcral quotidiano desde que o filho tinha saído de casa, Ricardina examinava com minúcia de ciência forense cada poro do esposo. Pareceu-lhe vislumbrar uma marca vermelha no pescoço, mas podia ser mordidela de mosquito. Fonseca apresentava um semblante relaxado, quase feliz, só podia ser mulher! A sua mente não conseguia parar de gritar: o aleijado do Fonseca arranjou uma vadia! Ainda nem tinha terminado o arroz de frango e o ciúme voraz já a triturava. Olhava o marido com um nojo misturado de raiva e o pobre homem nem se apercebia, perdido nos seus pensamentos. Ricardina sentiu-se rejeitada pela apatia de Fonseca que, naquele dia, pareceu-lhe reveladora de adultério. Só tinha de descobrir quem era a desavergonhada que tinha a audácia de desviar o seu aleijado. Fonseca não prestava para nada, é certo, mas era o seu peso morto e o de mais ninguém! Como se atrevia a lambisgóia? Como ousara essa rameira intrometer-se num sagrado matrimónio de mais duas décadas?
A perna direita começou a mexer compulsiva por baixo da mesa. Tique nervoso secular que denunciava a sua ansiedade.
- Está tudo bem, amorzinho? – arriscou Fonseca numa vozinha de rato.
- Tudo jóia! Tu não vê que está tudo jóia? Que tudo à minha volta é uma alegria só, hã? Tu não vê? – rosnou, a esbracejar num brado, a fera magoada.
Fonseca retirou-se para o escritório em silêncio. Ricardina foi fazer a higiene íntima da noite. Lavou-se com água de rosas perfumadas numa sugestão directa que não mais queria dizer do que “Hoje você vai cumprir com os teus deveres de marido, oh se vai.” Vestiu a camisa de noite mais sexy, guardada no fundo do gavetão há mais de sete anos, vermelha com rendas pretas, kitsch até não poder mais, e deitou-se de lado à espera do seu homem.