sábado, 26 de dezembro de 2009

O Duelo (II)

Terá sido a melhor aluna do 4º ano de Estudos Poéticos, Maria Helena, que alegadamente terá tido a infelicidade de mostrar a sublime ode pela primeira vez ao Professor Américo. Os relatos desse momento singular são impressionantes: o professor terá, primeiramente, ficado sem ar, enchendo-se a sua face de um rubor intrometido, quase escarlate; depois uma tosse convulsa que o fez expelir uma quantidade considerável de mucose atabalhoada; um rítmico não pode ser-não pode ser-não pode ser-não pode ser... enfim atirado para a sua cadeira de braços, a expressão lívida e grave, uma atitude absolutamente catatónica. Paralisado.
No dia em que a Universidade convidou o poeta Ernesto para uma conversa com os alunos de Letras, Américo fez chegar aos Recursos Humanos um atestado médico onde se certificava a sua impossibilidade de comparecer no local de trabalho nesse dia e nos seguintes. Indícios de depressão, ouvia-se nos corredores, o gajo passou-se, contava-se nos pátios e nos jardins em redor. De facto, Américo sentia-se pessoalmente ofendido com o sucesso da Ode de Ernesto. Antes de mais porque vinha a comprovar a falta de actualidade do traballho académico que fizera em resposta à solicitação dos ingleses e, pior do que isso, porque não conseguia desprezar a volumosa inveja que se coagulava em si ao reconhecer a estonteante criação poética do outro. Não podia ser! Ele, Américo, douto de renome em Poesis não ia sofrer essa humilhação. Tinha de reagir. A sua arma era a pena, tal como Camões, e o seu meio de ataque seria a Revista Cultural.
A elite intelectual da cidade, onde se fundia o mundo académico, tinha por hábito organizar soirées na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva onde os mesmos de sempre tertuliavam sobre as mais variadas expressões artísticas. Hoje é a noite da Literatura e Ernesto um dos convidados de honra. Enquanto a jovem encenadora de teatro discorre sobre o Pós-Modernismo das primeiras obras de Saramago, Américo procura manter-se na sombra, junto à entrada onde quase ninguém o consegue ver. Exactamente um segundo após ter dado um passo em frente e ter manifestado vontade de intervir, Ernesto pede a palavra mesmo por baixo das luzes que iluminam a mesa central. Faz favor, todos concordam ansiosos por ouvi-lo. Ernesto levanta-se, fixa um ponto junto da porta de saída, e declara num tom messiânico que “a arte é uma deusa tântrica” e que a relação sexual de prazer carnal que se estabelece entre Ela e o Poeta só aos dois diz respeito. Neste tipo de ligação privada e visceral, uma ménage-à-trois poderia ser catastrófica. Se o crítico literário pretende intrometer-se neste acto sexual deve estar ciente de que o vai necessariamente transformar e, por consequência, desfigurar. Assim, conclui portentoso, defendo a morte do crítico no texto. De nada serve e tudo destruirá.
Aplausos, aplausos entusiasmados e alguns sorrisos cúmplices rasgados, um frenesim generalizado que aclama Ernesto o Maior depois de Pessoa. Américo já não aguenta mais. Sem se fazer notar sobe as escadas que conduzem à sala de leitura do primeiro andar, vazia e escura, senta-se no meio de duas prateleiras de livros e quase mecanicamente retira a biografia de Napoleão e abraça-se a ela.
Finda a soirée, Ernesto, que sempre se deixara seduzir por bibliotecas vazias e enigmáticas, deixa-se ficar para trás. Um desejo algo mórbido e ligeiramente obsessivo fá-lo querer reabrir o Greatest Living Poets. Antes, porém, esgueira-se à sala de leitura do primeiro andar como que atraído por algo que conscientemente não entende. Aí, enquanto contempla a fina luz da lua que se deleita sobre as ordenadas prateleiras, sente uma respiração outra que não a sua.

- Quem está aí?
Nada.
De trás da estante onde dormem os livros esotéricos irrompe um pontiagudo sorriso branco que sussurra assim: Matei-te!

Finalmente o frente-a-frente por que tanto ansiava: Ernesto, o poeta, e Américo, o crítico, fazem lembrar os duelos de cowboys nas antigas Américas. Não, meu caro, parece que eu é que tive o prazer de te matar. Acabei de anunciar a morte do crítico literário, não ouviste? Américo ri alto, bem alto como se estivesse a gargarejar de dentro de um poço. Não, seu poeta medíocre, eu já matei a tua poesia, agora só me falta livrar-me de ti. Tira uma faca do bolso do casaco e aponta-a acutilantemente ameaçadora ao pescoço do poeta que não pisca os olhos nem uma vez. Nesse momento, Maria Helena, aluna dedicada e obstinada, sobe as escadas no encalço de Ernesto a fim de lhe pedir um autógrafo, mas quando se depara com o seu estimado professor de faca apontada ao poeta solta um berro horrífico que ecoa por todas as paredes da biblioteca.

Quando a Polícia Judiciária chega para prender Américo encontra um homem seriamente perturbado, os olhos raiados de sangue, a mesma lenga-lenga (a poesia é minha, só minha, esse não, esse nunca, é minha, é minha...), o corpo caído, derrotado de loucura. Foi apresentado a tribunal por tentativa de homicídio e condenado a um ano de internamento no ala psiquiátrica do Hospital de S. Marcos, por sinal, mesmo ao lado da universidade.

Ernesto, criador da Ode à Metáfora e assassino de críticos literários, continua a criar desmedida e sofregamente. É o sócio número 522 da Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

O Duelo

Quem está aí?
Nada.
De trás da estante onde dormem os livros esotéricos irrompe um pontiagudo sorriso branco que sussura assim: Matei-te!
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Três meses antes, Ernesto, poeta reformado, chegava quase ao fim da Rua do Anjo e preparava-se para virar à direita. Pensava já que uma das coisas que mais o fascinava na Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva era precisamente o local onde se erguera, na artéria jugular da sua Bracara Augusta.
Ernesto amava a sua cidade como não poderia nem conseguiria amar outra. Aí nascera e crescera, aí tinha feito os seus grandes amigos, tinha sido numa daquelas saudosas tardes de jardim de Santa Bárbara ao domingo que se apaixonara pela sua esposa Etelvina. A Avenida da Liberdade, que testemunhara os primeiros passos dos seus rapazes, via-o agora a ele, poeta reformado, tentar caminhar prazeirosamente todas as manhãs por entre a afoita multidão i-podesca do século XXI.
Desistira da escrita há mais de dez anos por categoricamente considerar que o mundo ainda não estava preparado para entender uma metáfora. O mundo girava em torno de eufemismos, aliterações onomatopeícas e demasiadas perífrases. Sentir uma metáfora, compreendê-la na sua mais absoluta totalidade, só era possível com a respiração e isso ninguém que conhecesse era capaz de fazer. Quer dizer, talvez só uma pessoa soubesse compreendê-la, senti-la, talvez... bem, mas com esse senhor ele, Ernesto, não estava interessado em entabular qualquer tipo de conversa. Esse senhor dava corpo à face mais mercantilista da poesis, lucrava com Ela, era famoso por Ela, ensinava técnicas para chegar a Ela... pfff, um grande fanfarrão era o que esse senhor era, fanfarrão, arrogante e estúpido. Ernesto sentia os nervos a fervilhar eléctricos só de pensar nesse senhor. Por sorte, nesse momento, olhou o seu reflexo no vidro que separa o passeio da rua da sala de leitura do rés-do-chão e descortinou uma ruga revoltada já instalada no seu sobrolho. Ernesto, olha o teu coração, sentiu a doce voz da sua Etelvina.
A porta de entrada desenhava-se apelativa perante si. Ernesto despediu-se destes pensamentos ruins e abriu-a: à sua frente o largo balcão de informações, o sorriso cúmplice da jovem sentada em frente a um molho de fichas de inscrição e à sua esquerda os largos degraus de mármore que todos os dias conduzem tantas crianças ávidas e irrequietas à maravilhosa sala de leitura infanto-juvenil do primeiro piso.
Nesse momento, o carteiro tocava à campaínha da casa de Américo e o próprio levantou-se das suas leituras e foi atender. O subscrito era quadrado, alto e bege, de um tipo de papel duro e institucional. Royal School of Poetry & Arts? - leu. O que será que estes gajos querem comigo? - pensou. Por reconhecido mérito, blá blá blá, inúmeras publicações na área dos Estudos Poéticos, humm humm, autoridade académica de peso, ah pois é seus bifes, vimos por este meio solicitar um parecer, será que ainda ganho dinheiro com isto?, parecer de foro académico e tal, Os Dez Maiores Poetas Vivos de Portugal. Huuummmmm, ruminou Américo. E outra vez, coçando a barbicha, huuummmmm. Quando viu o seu nome, Perestello, de Souza Américo imediatamente a seguir à vírgula que sucedia a The Ten Greatest Living Portuguese Poets decidiu que ia aceder ao pedido dos ingleses custasse o que custasse. Bolas, era a Royal School! Seria de mau tom desiludir Sua Majestade.
Herberto Hélder, Vasco Graça-Moura, não esse não, António Ramos Rosa, Pedro Mexia, Manuel Alegre, Ana Luísa Amaral, não esse nem pensar... faltam quatro. Passadas duas horas já só faltavam três poetas, sendo que nos quatro dias seguintes apenas dois chegaram à lista que, neste ponto, só desejava ser concluída. Durante todo este processo de selecção, Américo continuou a repudiar a voz que teimava em insinuar-lhe repetidamente o mesmo nome. Não, esse não. Esse não vai parar à lista, era o que faltava!
Um mês após ter recebido aquele pedido de parecer marcado a vermelho com alguma urgência, Américo enviou à Royal School of Poetry & Arts o seu texto, academicamente justificado com cerca de oitenta notas de rodapé e mais de uma centena de autores citados, intitulado Os Nove Maiores Poetas Vivos de Portugal com um discreto asterisco remetendo para a página 118 uma justificação tão sucinta quão vaga sobre a impossibilidade de distinguir o décimo maior poeta português vivo. Que desculpassem mas ele, Professor Doutor Américo de Souza Perestello, Professor Catedrático da Universidade do Minho há dezenas de anos, não considera que tal poeta de facto exista. Sincere apologies for any inconvenience caused.
Os ingleses deram à estampa Greatest Living Poets e o capítulo reservado a Portugal, com muitas reticências entre parêntesis, foi assinado por Américo de Souza Perestello, PhD.
Quando a referida antologia dos mais importantes poetas da actualidade chegou à Biblioteca Lúcio Craveiro da Silva, Ernesto encontrava-se sentado nas mesas do bar a ler o “Correio do Minho”. Viu o livro passar por si entalado entre os dedos da mão da Senhora Dona Conceição e o seu generoso peito que se encaminhavam para a sala de leitura térrea. Nesse espaço, o livro foi pousado numa das prateleiras metálicas que estão abrigadas pela indicação Destaques. E ali ficou destacado até Ernesto ganhar coragem de pegar nele, o que demorou cerca de três dias.
Escolheu uma hora de pouco movimento, quase às 20 horas quando a biblioteca fecha, e como quem não vai a nada sentou-se no sofá que o convidava há mais de setenta e duas horas mesmo em frente aos Destaques. Foi só estender o braço. Antes de o abrir pensou que estava diante de duas possibilidades: ou era reconhecido ou era ignorado. Ambas o aterrorizavam. Portugal, página 288, a ponta dos dedos movia-se ágil. Leu o artigo daquele grande fanfarrão da primeira à última letra de uma só vez. Por fim respirou. Voltou à lista da página 292, lá estavam os nove maiores poetas portugueses que podiam gozar da sua glória em vida. Ele não. Fechou o livro com estrondo. Voltou a abri-lo na página 292. Ele não. Tinha sido ignorado e acabara de descobrir que afinal queria ser reconhecido.
A revolta. Esse sentimento à partida olhado com desdém fez com que Ernesto se reerguesse Poeta daquele sofá. A terrível injustiça da qual acreditava ter sido vítima moveu as suas determinadas pernas em direcção ao tampo de madeira que evitava há anos. A folha de papel branco nem teve tempo de o intimidar e assim enebriado de génio e ânsia justiceira criou a mais bela ode do seu tempo, a Ode à Metáfora. Exausto, deixou que os seus braços repousassem cruzados no centro da mesa onde a transpirada fronte veio pousar triunfante.

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Girls-who-wish-to-be-djs-just-to-dance-their-favorite-tunes


Foi mais ou menos assim como se vê nesta imagem. Muita folia, sorrisos e boa música!


Dj's in da house:


Dj Ana Conda

Dj Ana Teutonic

Dj Silver Moon

Dj Cata Clismo

Dj Horny Punk

Dj Sofes - Desnorteada

Dj Kikas

Miss Juno

Dj M&M

Dj Inez Quecível

Dj Rosemary

Sista Sam

Dj Talas

Dj Tanex


As dj's da noite provaram que não estão para brincadeiras. Stay tunned for the next chapter.


Na foto: Dj's Silver Moon, Cata Clismo e Kikas

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

"Que amar senão as estrelas?" Obrigada Mário Fonseca!


Hoje os aplausos serão para Mário Fonseca, poeta praiense recentemente desaparecido. Os amigos e admiradores, os que privaram da sua companhia e os que se arrependem de nunca se terem abeirado dele, os amantes da lírica e da expressão literária, os académicos, os reconhecidos e desconhecidos, os curiosos... estarão todos na esplanada do Café Sofia, centro da Cidade da Praia, para aplaudir o homem, o poeta e a obra enquanto o sol se põe.
Fica aqui um dos poemas a ser partilhado nessa homenagem. Para aqueles que insistem em pedir-me que pare de sonhar.


Onde fincar os pés senão nas estrelas?
Onde senão no sólido chão das estrelas?

Aqui?
Aqui onde medra medra a flor?

Oh rosa!
Que amar senão tua inexistência essência?
Que amara senão teu persistente sonho?

Isto?
Isto desta implacável gramática?

Oh rosa!
Onde fincar os pés senão em tuas inexistentes pétalas?
Onde senão no inexistente sonho de tuas persistentes pétalas?

Aqui?
Aqui onde tudo o que medra é só e apenas terra?

Oh tu embora da terra!
Oh tu embora do chão do coração!

Que amar senão as estrelas?

Que amar senão as estrelas
que estrelas são, palpitantes
E as inconsistentes rosas
Que persistentes cantam dentro do meu coração?

Mário Fonseca

Foto: Mito Elias, in albatrozberdiano