domingo, 26 de outubro de 2008

Maria Ramantxada: Epílogo

A convite da Feira do Livro de Lisboa, Arménio Vieira deslocou-se à diáspora após uma ausência de mais de vinte anos. Ninguém acreditava que o poeta deixasse as suas tardes de xadrez na esplanada central, nem que fosse apenas por uns dias, para se enfiar num avião com destino (ainda por cima) a Portugal. Rolou aposta, rolou tudo mas o facto é que, naquela madrugada de Junho, o escritor deixava para trás o Monumento ao Emigrante erigido na rotunda do aeroporto. Si ka badu, ka ta biradu.
Após cerca de oito anos sem nada dar à estampa, Arménio regressava com um romance policial e estreava-se assim neste género. Teve honras de grande escritor, elogios que normalmente eram dirigidos àquela tríade africana Germano Almeida- José Eduardo Agualusa- Mia Couto, comitiva à sua espera no Aeroporto da Portela e tudo! O Conde começava a sentir-se indeed membro da realeza. Levaram-no ao hotel no centro de Lisboa, instalou-se na sumptuosa suite, acendeu um Davidoff, mirou-se ao espelho e sorriu entre baforadas. Valera a pena, tudo valera a pena!
Vestindo a capa de notável e excêntrico escritor das ilhas, Arménio desceu ao bar do hotel onde o aguardava a jovem que o iria apresentar ao público nessa mesma noite. A si e ao seu mais recente romance: Vermelho Escarlate. Quando a viu cruzar a perna à mesa e pedir um whisky, Vieira achou-a ainda mais nova do que certamente seria: 30 anos no máximo, pinta de 23 e vozinha de 12. Cabelo castanho curto desalinhado, olhos grandes e expressivos de gato, nariz arrebitado, boca fina e rasgada, rapariga para o seu metro e setenta, botas de cano alto e vestido preto. Justo. No momento em que Arménio se abeirou da sua mesa, Joana Carvalho engasgou-se no whisky, tossiu muito e esbaforidamente, pediu desculpa, que desculpasse muito e continuou naquela convulsão entre perdigoto que se solta, comichão na garganta, excitação de estar perante aquele homem cujas palavras tanto admirava e embaraço pela sua própria figura atabalhoada. Acalmando-se a garganta e os nervos da pequena, puderam sentar-se e trocar impressões sobre o alinhamento da sessão dessa noite no Parque Eduardo VII.
Assim que entrou no recinto-anfitrião da Feira do Livro de Lisboa, Pires-Laranjeira, o aclamado crítico de literatura africana, veio estender-lhe a mão, dar-lhe os parabéns por semelhante lufada de ar fresco na escrita cabo-verdiana, quem diria que por detrás do poeta se escondia um impressionante homem do crime, semelhante era a minúcia com que descrevia os homicídios desse terrível Jack the Ripper de Santo Antão. Arménio balbuciou algo indistinto e foi imediatamente ao bolso buscar um cigarro. Insistia em manter a sua pose arrogante e elitista, aparentemente não se deixava deslumbrar por nada nem por ninguém, quando avistou António Lobo Antunes, do outro lado de um enorme corredor de livros da Caminho, ambos se contraíram e lançaram aquele olhar fechado e provocador de cowboys no Far West: pernas entreabertas em U, mãos pousadas no coldre prontas a sacar a arma, assobiozinho western a lembrar o mestre Clint Eastwood ao longe, o bom-o-mau-e-o-vilão!
Sentado na mesa de honra, de frente para um público curioso e ansioso, Arménio começou a sentir-se inquieto. Não tinha nada com que ocupar as mãos, uma espécie de suor frio descia-lhe pelo cabelo oleoso, tentava concentrar-se em não abanar a perna enquanto ouvia Joana a tentar uma interpretação plausível do horror descrito na sua obra. A rapariga apoiava-se em expressões como intensidade dramática, metalinguagem literária, imagética do locus horrendus, algumas ressonâncias de Frankestein de Mary Shelley, metáforas da fragilidade humana perante a pata opressora e pesada do desenvolvimento incontido, desmesurado e atroz, sanidade versus loucura e a mente de Arménio fugiu-lhe e soltou-se… já não via nada à sua frente, apenas o terror nos olhos dela quando percebeu que ia morrer, sentia os seus braços a apertá-lo no desespero de o tentar deter e ao mesmo tempo de o levar a penetrá-la, mais de trinta anos de puro desejo reprimido, disfarçado, adiado e, naquela noite, a ilusão de que a espera havia chegado a fim. Gargalhadas que o despertam, o auditório sorridente e expectante aguardando as declarações do notável escritor. Abre a boca e não lhe sai um som, sorri para disfarçar, Joana-bombeira diz que deve ser da emoção e continua o seu solilóquio. Não fazia ideia que um ser humano podia conter tanto sangue nas veias, sangue vivo e feroz que esguichava por todo o lado. Quis acabar com ela, acabar com aquela vontade de a querer todos os dias, de fingir que não sentia o seu desprezo. Quis matar o seu amor por já não aguentar mais amá-la assim. Quis extinguir a única pessoa que sabia que ele era capaz de procriar, que tinha um filho e que a obrigara a dá-lo ao mundo. Não queria mais cúmplices para a sua egocêntrica monstruosidade que o fizera abdicar do fruto daquele amor apaixonado e doentio e permitira que aquele pobre rapaz fosse abandonado, saltando de lar em lar, procurando respostas e, nada conseguindo, escondendo a sua dor debaixo da tinta berrante com que pinta o cabelo todas as semanas. Uma ligeira cotovelada… hã? Inspiração para a criação daquele serial killer que aterrorizava o Paúl? Arménio cora ligeiramente. O homicídio de Maria Ramantxada já tinha sido há sete ou oito anos. Nos livros, sorri, nas minhas intensas leituras e no cinema, claro. Já alguma vez lhe disse que quando era miúdo, lá na Ponta Belém, eu e os meus amigos fazíamos colecção de pedacinhos de negativos de filmes? Joana confessa que não fazia ideia que ele fosse um admirador da Sétima Arte e que nunca lera nada a esse respeito. Pois é, menina Joana, pois é, sorri Arménio maldosamente perante um público ignorante, sabe que os críticos acreditam saberem tudo sobre os escritores quando em verdade não sabem nada. E remata, piscando o olho: eu, por exemplo, sou uma caixinha de surpresas!

sábado, 25 de outubro de 2008

Correio sentimental

“Querida Menina Corações-Solitários:

Escrevo-lhe porque preciso do seu conselho. Já tenho dezasseis anos e gostaria de ter amigos e de sair aos sábados como as raparigas da minha idade, mas nenhum rapaz quer sair comigo porque nasci sem nariz, embora dance bem e não tenha má figura.
Todos os dias olho-me ao espelho e choro. Tenho um buraco que assusta as pessoas e até a mim mesma, pelo que não posso culpar ninguém por não sair comigo. A minha mãe gosta de mim, mas chora desconsoladamente cada vez que olha para mim.
O que fiz eu para merecer esta terrível sorte e nascer assim?
Perguntei ao meu pai e diz que talvez tenha feito algo no outro mundo antes de nascer, ou talvez seja um castigo pelos seus pecados.
Eu penso que não, porque o meu pai é muito boa pessoa.
Crê que deveria suicidar-me? Atenciosamente,
Desesperada.”

Nathaniel West, Menina Corações-Solitários, 1962

quinta-feira, 16 de outubro de 2008

Vila Revisited


Há locais que não se esquecem, onde sempre queremos voltar.
Há imagens que não nos largam, mesmo que só existam dentro de nós.
Sorrisos ternos e eternos.

Maria Ramantxada XI

O agente Ederlindo da Polícia Nacional era a força da lei mais próxima da escada de metal que conduzia ao telhado da reitoria onde Dú prosseguia o seu mea culpa. Que ninguém lhe dava valor, que se chegavam a passar dias em que nem 20 escudinhos lucrava, que todos o consideravam um incompetente, um lixo ambulante, o parasita-mor de uma sociedade já de si tendencialmente parasitária, que nunca conhecera o pai, que não tinha onde cair morto… nem vivo, basicamente, não tinha onde cair… et caetera, et caetera (o seu discurso lamecho-romancezinho Danielle Steel ia amolecendo alguns dos presentes e fazendo saltar uma ou outra lágrima entre as senhoras mais emocionalmente vulneráveis)… que muitos o tinham por inculto mas que não, que era um grande apaixonado pelas letras, louvores à Claridade, a Teixeira de Sousa, Oswaldo Osório e até a Fátima Bettencourt (para quem aproveitava a ocasião e mandava mantenhas) mas que, entre todos, não conseguia deixar de reconhecer a grandiosidade de Pessoa. E nesse dia, tremeu a voz e pareceu limpar um ranhozito que descia pela narina castanha, nesse dia em que o poeta completaria 120 anos, decidira levar a cabo algo glorioso, algo memorável, não sabia bem o quê mas algo que não fosse jamais olvidado em cem anos, algo que inscreveria o seu nome no panteão dos imortais. E então viu-a. A culpa era dela que gostava de abanar as curvas pelas ruas como se não soubesse que era boa, feita mulher-volúpia que deixa os homens entregues às suas mais primitivas fantasias sexuais, e por isso mais belas. Por acaso a porta do prédio estava aberta, os vizinhos tinham aquela mania de passar os dias sentados em banquinhos coxos de madeira, com que ocupavam o passeio da Rua das Flores, e a beber cervejas desde as dez horas da manhã. Ora, já seriam umas sete e tal da noite quando ele passou ali, a vizinhança já tropeçava e não via ninguém, a própria D. Maria, quando espreitou pelo buraquinho da porta, nunca desconfiou. Abriu sem hesitar e enquanto se virava para a cozinha à procura de umas sobras de comida… um braço à volta do pescoço, um clic, arrastou-a para a cama para dar um ar de crime passional e aí divertiu-se a cortá-la toda. Minuciosamente. Só assim ficaria na história. Saiu já passava das quatro enquanto o prédio dormia e foi-se encostar, como de costume, à porta do Café Central.
Já ninguém chorava na assistência. O Dú não era nenhum coitadinho, era sim um criminoso sanguinário! E estava ali à frente de todos a assumir a autoria daquele homicídio horrendo, o mais espectacularmente visceral de que havia memória na Cidade da Praia. Uma voz anónima grita: Ó Ederlindo, então tu és polícia para quê? Estás aí mesmo a jeito e não fazes nada? Ederlindo, um dos poucos agentes já redondinhos da idade, bigode à português e mania de mandar fazer, saiu do transe em que se encontrava, olhou para cima onde Dú agora ria escancarada e escandalosamente mostrando com orgulho o meio dente da frente enquanto aterrorizava a população, e a primeira coisa que fez foi agarrar-se ao walkie talkie e pedir backup. Da rua ao lado, do supermercado Felicidade, chegam mais três agentes e os quatro sobem ao telhado em fila indiana a fim de prender Dú que não oferece a mínima resistência.

O caminho que o algemado percorre até à carrinha transforma-se numa tirada verdadeiramente hollywoodesca que ficará eternamente gravada na memória dos presentes em modo slow motion. Dú, de braços bem levantados a urrar gargalhadas doentias, quase tropeça nas suas vestes rotas mas nem por isso perde a compostura basofa qb de man of the moment; quatro agentes da Polícia Nacional em seu redor a abrir caminho e a afastar a população que, entretanto, já o queria desfazer das formas mais cruéis. Alguns exemplos de mimos atirados a Dú naquele caminho que viria a ser noticiado na imprensa como Dead Man Walking: N’ta matou (Eu Mato-te!); N’ta trou odjo (Tiro-te os olhos!); N’ta dou cu faca (Espeto-te uma facada!)… and so on, and so on. Nada disto assustava Dú que quanta mais injuria sofria, mais se divertia com a situação. Finalmente entrou na carrinha da polícia, acomodou-se na parte de trás, baixou as calças e colou as bochechas do seu rabo flácido e descaído ao vidro enquanto virava a cabeça para todos e deitava a língua de fora.

Levado a tribunal, julgado, culpado e encarcerado. Deveras comentado na imprensa, discutido nos cafés, invejado pelos pequenos delinquentes e temido pelas boas famílias. Com este homicídio Dú conseguiu definitivamente elevar o seu status: de quase-anónimo maltrapilho desgraçado passou a maior criminoso crioulo de sempre! Não é uma subida muito favorável, mas reconheçamos que é uma subida.

Os amigos e conhecidos da D. Maria Ramantxada sentiram a sua morte vingada e lentamente as suas vidas voltaram ao que sempre foram: aquele formigueiro tão praiense movido a curiosidade exacerbada em querer saber da vida dos outros.


A alma de Maria nunca descansou em paz.

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Valor da Vírgula

Vírgula pode ser uma pausa... ou não.
Não, espere.
Não espere.

Ela pode sumir com seu dinheiro.
23,4.
2,34.

Pode ser autoritária.
Aceito, obrigado.
Aceito obrigado.

Pode criar heróis.
Isso só, ele resolve.
Isso só ele resolve.

E vilões.
Esse, juiz, é corrupto.
Esse juiz é corrupto.

Ela pode ser a solução.
Vamos perder, nada foi resolvido.
Vamos perder nada, foi resolvido.

A vírgula muda uma opinião.
Não queremos saber.
Não, queremos saber.

Uma vírgula muda tudo.

ABI: 100 anos lutando para que ninguém mude uma vírgula da sua informação.

Detalhes Adicionais
SE O HOMEM SOUBESSE O VALOR QUE TEM A MULHER ANDARIA DE QUATRO À SUA PROCURA.
Se você for mulher, certamente colocou a vírgula depois de MULHER.
Se você for homem, colocou a vírgula depois de TEM.

Campanha dos 100 anos da ABI (Associação Brasileira de Imprensa).
Obrigada Pim, obrigada Tide! :)

domingo, 5 de outubro de 2008

O bracarense


Esclarecimento prévio: o bracarense é um bicho que faz parte do reino animal português. O factor que o distingue dos demais (o lisboeta aka alfacinha; o portuense aka tripeiro; o coimbrinha ou o poveiro, só para citar uns quantos exemplos paradigmáticos de algumas subespécies peculiares) é o seu habitat natural: o vasto concelho de Braga, rico em freguesias e vilarejos com nomes tão estranhos como Frossos e Priscos.
Arriscaria a dividir o bicho bracarense (por regra um animal de pele morena, cabelo naturalmente escuro e alguma abundância de pelugem) em cinco subtipos, todos eles altamente merecedores de estudo mais aprofundado. Assim temos:

1. o parolo assumido;
2. o parolo polido;
3. o mediano;
4. o pseudo;
5. o colorido.

À primeira vista poderão parecer poucas categorias para tanta e variada bicharada, mas uma análise cuidada e exaustiva certamente concluirá que nestas cinco gaiolas há espaço suficiente para todos os animais. Examinemos cada uma destas começando pelo bicho mais abundante na cidade, o que pipoca em cada esquina, deambula pelas praças e faz de domingo o dia do passeio ao centro: o parolo assumido.

1. O parolo assumido, também carinhosamente apelidado de broeiro, neca ou tóne, distingue-se ao longe pela sua atitude despreocupada, ausente de qualquer tipo de preconceito, de quem não tem nada a esconder. É parolo, tem total consciência disso e muito orgulho bafejado a perdigotos de fino e hálito de tremoços. Nem sequer lhe ocorre, portanto, uma possível mudança de status, sendo por isso um dos subtipos mais honestos consigo e com o restante reino animal.

O comportamento em matilha varia consoante a faixa etária: os que já ostentam pelugem branca gostam de usar corrente de ouro ao peito, como um troféu de alguma façanha vitoriosa, boné surrado quase sempre do Benfica ou do SCB (o nosso Braguinha, como gostam de lhe chamar), ou ainda de um qualquer candidato à presidência de um qualquer trono, bolsa de ganga presa à cintura onde guardam o cartão gasto da Caixa, o BI e mais uns trocos, roupa geralmente coçada e alusiva à moda dos anos 80. Um pormenor que nunca falha é a autoridade, o à-vontade e o savoir-faire que só a experiência permite com que coçam o tomate em público e sem qualquer tipo de pudor. Irritou? Coçou! Se alguém viu, paciência, que não olhasse!
O parolo assumido jovem gosta, antes de mais, do gel. Cabelo irrepreensivelmente lambido e com ar de Cristiano Ronaldo (ídolo de todas as espécies de parolos, venerado na intimidade de cada parola, discutido e aclamado em cada noite de copos), ganga coçada e muito rota, calça justa para salientar aquilo que consideram ser um rabo todo bom, t-shirt preta, colada ao peito e vulgarmente de decote em bico (de onde sobressaem os pelos misturados com os músculos trabalhados e uma corrente de prata à Quaresma) ou camisas aos quadrados metidas para dentro a fazer ver o cinto preto de fivela Far West, Dangerous, e mais recentemente Sexy, bota texana ou sua semelhante que suporta um andar pausado, a armar em engatatão, temperado ocasionalmente com um descarado “ó jeitosa, és boa pa caralho, óbistes?” ou outra pérola do género com que teimam em brindar as fêmeas.


A fêmea do subtipo parolo assumido, por outras palavras, a chamada brejeira, vulgo “labajona” ou mesmo rameira, costuma fazer-se notar imediatamente pelo tom de voz alto acima da média, pronúncia do norte orgulhosamente bem vincada e inúmeros caralhos e fosga-se’s pelo meio. As fêmeas já de uma certa idade optam quase sempre pela madeixa loira a contrastar com a raíz muito preta que emolduram um corte à cogumelo, muitas com franja à Cataratas do Iguaçú, no Inverno não largam o blusão de couro preto largo que pensam fazer conjunto “espectacular” com a saia travada de fazenda pelo joelho, botim preto de biqueira (que é aquela bota que vai até um pouco acima do tornozelo), collant à cor da pele, bolsa de pele-fingida verde ou roxa e laca qb na franja e na poupa que teimam em erguer na testa. Gostam de estar nas portas dos hospitais por qualquer unha partida, enchem os corredores da Segurança Social e atropelam-se nas paragens de autocarro.
A parola assumida jovem é bastante mais complexa porque pode assumir várias formas, desde a já referida rameira pura àquela que se aproxima da parola polida. É normalmente anafada, e se alguma vez teve brilho no rosto foi carcomido pelo característico problema de acne. Regra geral parece que lhe caiu uma garrafa de óleo Fula no cabelo e faz um enorme esforço para se vestir como vê nas novelas: tudo é berrante, tudo é aparentemente fashion, tudo é a menos de 3 euros a peça. A parola assumida jovem sonha em ser como a Floribela e faz do shopping a sua Meca. Para lá se desloca domingo após domingo com as amigas a fim de o percorrer por inteiro no mínimo 27 vezes, sonhar em frente aos modelitos que vê nas montras e consumir o que a magra poupança lhe permite. As tardes de domingo no shopping são, aliás, marca característica dos parolos assumidos, machos e fêmeas, que assim consideram estar na moda.


Em traços gerais, e com a absoluta consciência de que muito ficou por anotar, está aqui apresentado o parolo assumido de acordo com a pena mordaz da Minhokinha. Seguir-se-á o parolo polido, espécie muito manhosa que obrigará a autora a infiltrar-se no submundo perigoso das Modalfas e Fabio Lucci's. A não perder!

Pérolas de Braga em cyber-shot

Cant' é ki é?
(conseguem ouvir a inigualável pronúncia do norte?)

quarta-feira, 1 de outubro de 2008

Maria Ramantxada X (aleluia!)

“Boa tarde, senhores telespectadores, encontramo-nos aqui na conhecida pracinha da Escola Grande, na Cidade da Praia, onde uma manifestação de cidadãos sem precedentes clama por justiça.” A imagem abandona o sorriso amarelado da jornalista Tamblina Dias e concentra-se nas dezenas de pessoas lideradas por Santos-Lima, percorre a praça, foca os jogadores de xadrez da esplanada do Café Central, os bancos de jardim ocupados pelos miúdos que saíram do liceu e pelas mães que monitorizam atentas as brincadeiras dos filhos, voltando a centrar-se no tal sorriso sem sal. Tamblina Dias, jornalista das sérias, famosa pelo seu bordão linguístico de muito bem pronunciar os s’s finais de cada palavra, continua o seu discurso pausado elucidando que é deverasch extraordinária a forma como os cidadãosch da Praia aderiram em massa a esta convocatória lançada pelo Professor Doutor Santosch-Lima e pela jovem revolution Aristё, de quem, aliás, sou amiga íntima, pessoal e intransmissível há muitosch e longosch anosch. Vem Aristё falar aos senhores telespectadores lá em casa da urgência em mover as massas em prol dos nossos interesses e não dos do sistema; vem Santos-Lima, grave e pesaroso, a lamentar as infâmias proferidas contra a sua grande amiga e também a manifestar a sua profunda revolta contra a falta de actuação da Polícia Nacional, que ainda nada revelou sobre o autor do crime; vem o marido de Dirce, directamente de Lém-Cachorro, dizer que o resultado da autópsia foi conclusivo: ataque cardíaco fulminante provocado pela visão horrenda das partes do corpo assassinado da patroa; vem Arménio que começa por clarificar que não conhecia a senhora de parte alguma e que nem sabe bem por que está ali mas que, sim, agora que pensa nisso, talvez se lembre dela quando era jovem e não parecia pessoa de fazer mal a alguém (esquiva-se o mais depressa que pode); vem Améliazinha, na qualidade de vizinha-que-não-deu-por-nada, chorar um pouco em directo, que é muito bom para o share; vem Senhor Djony, dono do Covil, atestar que a pobre alma descansa em paz porque nada ficou a dever no seu estabelecimento; vem um qualquer poeta de renome com um poema improvisado a grogue para a ocasião (Maria hora di bai, nu fica li sem bu sabura…) e com semelhante procissão o sorriso de Tamblina Dias amarelece cada vez mais. Enquanto isto, outras pessoas vão-se abeirando da praça. Chegado das mesas do Café Central aproxima-se Adão Decente, hoje de pêlo capilar cor-de-rosa, acompanhado do amigo do costume e duas boazonas de um metro e noventa com poucos trapinhos a cobrir as curvas naturais. O escultor-barra-apresentador-barra-figura-pública deixa cair um audível “Ai não acredito que já me apanharam na rua, não consigo passar despercebido em lado nenhum, de certeza que me vão querer entrevistar”. O amigo e boazonas concordam prontamente, de facto é um cusa fastenta não poder andar na via pública à vontade. Uma adolescente de 13 anos aborda o apresentador para se certificar que ele é, de facto, o rapaz que ela vê na televisão, ao que o artista responde, bradando aos céus: “Eu não disse? Eu não disse? Oh fama inglória (costas da mão direita na testa), oh peso infame que a Arte me dá a carregar, oh…” e já ia embalado para duas horas de dissertação pública sobre o sofrimento atroz dos artistas se não tivesse proferido a palavra mágica, aquela que, onde quer que seja dita ou apenas segredada, dispara o mecanismo de Anacleto Swainsteiger qual alarme de bombeiros. “Arte? Falaram em Arte Contemporânea? Por acaso estava mesmo a passar aqui ao lado e pareceu-me ouvir…”. Mal Decente abanou a cabeça em concordância, Anacleto levou de imediato os dedos ao queixo mimando os seus pelinhos queridos em pose performativa.

De repente levanta-se um vento ruidoso e quente. O famoso vento-levanta-saias das ilhas. Traz consigo um odor estranho que faz toda a gente voltar-se na sua direcção. Mamã, cheira a chulé, diz a menina dos olhos de rebuçado à mãe, que encolhe os ombros. Não seria só cheiro a pé sujo mas uma simbiose de muito fedores e quanto mais o vento soprava mais se sentia aquela náusea entranhar-se em todos. Aristё aponta para o telhado da Reitoria da universidade, mesmo do outro lado da praça, vejam, está ali qualquer coisa! É um pássaro? - arrisca o fotógrafo paulista; não, parece uma avioneta – responde Elisabete que, pela primeira vez na sua vida, chegara sem ser notada. O homem em cima do telhado vira-se para a multidão e é imediatamente reconhecido: é o desgraçado roto maltrapilho que anda descalço pelas ruas a vociferar e a cravar cigarros, cujo fedor é mais intenso do que uma fábrica de celulose. Aaahhhh… os ilustres e anónimos cidadãos da Cidade da Praia deixam cair o queixo. Aaahhh… os telespectadores lá em casa. Até Tamblina Dias não teve reacção. Em directo. O homem conhecido por Dú abre os braços à Cristo-Rei, exibe as vestes (calças? Camisa? Não se percebe) de um castanho-merda extremamente gasto, escancara o sorriso mais psycho que alguma vez se lhe viu, deixa à mostra o meio dente da frente e com um urro assustador declara:

Fui eu que a matei! Fui eu! Matei-a, queimei-a e parti-a às postas! Fui eu, fui eu!!

Nem um pio na pracinha da Escola Grande. A televisão gravou tudo, o país parou.