domingo, 27 de julho de 2008

Maria Ramantxada VII

Três, dois, um, o sinal acende-se: No Ar!
Boa noite, Cabo Verde, hoje é sexta-feira, dia de comentarmos a imprensa semanal aqui no Grau Zero, o programa intelectual da televisão nacional. Comigo no estúdio tenho os comentadores habituais…
Era sempre assim no último dia da semana. Adão Decente ocupava o pequeno ecrã com o seu rasgado sorriso branco de dentes meticulosamente coordenados, arranjados e polidos. Era um comunicador nato, apresentador de vários programas de televisão, imagem de marca de variadas campanhas de saúde, de cidadania e de desporto. Adão era o que se podia chamar o namoradinho de Cabo Verde quer na popularidade que conseguia reunir, quer no número de fãs histéricas, normalmente miúdas de liceu, que o perseguiam nas ruas. Nem trinta anos tinha mas pose de quem já viu e viveu tudo, já desbravou mares nunca antes navegados, conheceu um número infinito de mulheres, continentes misteriosos, experimentou o exotismo de cada lugar por onde passou, leu tudo, ensinou mais ainda e esculpiu… esculpiu o mundo que se vergava a seus pés. Adão Decente encarnava na perfeição os ideais decadentistas dos poetas franceses de fin de siècle, Baudelaire, Verlaine, je suis l’empire à la fin de la decadence, respirava as imagens por eles criadas do artista como uma ave solitária, dolorosamente encerrado na sua torre de marfim lá do alto onde contemplava a Decadência Generalizada, Nós, Cidadãos Comuns, Meros Mortais que habitavam a Cidade da Praia. Dessa certeza de ser diferente, desse impulso de se sentir único, nascia a necessidade de Adão se mostrar irreverente, peculiar, europeu em África. Embora Cabo-Verdiano de nascença, muito cedo se tinha acostumado a fazer as malas e a conhecer novos lugares. A sua vida de saltimbanco tinha começado ainda em criança, rodando os vários lares de adopção das ilhas: Mindelo, Tarrafal de S. Nicolau, Vila de Sal-Rei, S. Filipe do Fogo e, por último, Praia, quando já era um rapazinho de doze anos. Cedo entendeu que era diferente dos outros meninos e precocemente perseguiu o sonho da escultura, resultado duma noite em que fora esquecido na sala de leitura da Biblioteca Nacional pelas acompanhantes do lar. Nessa noite branca, tendo à sua disposição todas as salas normalmente vedadas ao público, Adão Decente apaixonou-se por Miguel Ângelo, pela sua Capela Cistina mas sobretudo, e com fervor religioso quase doentio, pelo David: homem de pedra mais perfeito do que os mortais, mais macio do que os ombros de uma mulher, mais voluptuoso do que o colo de uma meretriz. Nesse dia Adão prometeu a Deus que iria esculpir o David cabo-verdiano tão perfeito como o italiano. E chamar-lhe-ia Adão, nome do primeiro homem na Terra, nome que esconde alguma pureza virginal, nome da mente genial que o terá criado.
Cresceu, estudou muito, conseguiu todas as bolsas de estudo a que se candidatou e que o levaram à Europa e ao Brasil. Ingressou nas Belas Artes de Lisboa e desde o primeiro dia começou a trabalhar concomitantemente num barzinho reles da zona de Santos com o objectivo de juntar dinheiro para ir a Florença. No final do curso foi de comboio e mochila às costas. Quando, glorioso, pagou o bilhete de estudante na Galleria dell' Accademia e entrou no grande salão de exposições, sentiu-se pequeno, minúsculo. Virou à esquerda e aí, ao fundo do corredor ladeado por esculturas inacabadas, esculturas-ensaio, o Grande, o Incomensurável, o Magnífico David. Como era ainda mais belo ao vivo, colocado naquele pedestal e iluminado por aquela cúpula de vitrais azuis e amarelos por onde entravam os raios de sol florentinos e tornavam David num Deus pagão. Rodeou-o, estudou-lhe minuciosamente as articulações, as veias, falange-falanginha-falangeta, as unhas os joelhos, o sexo, admirou a serpente que se cruzava nas suas costas e que o herói empunhava em pose de vitória, a curva dos ombros alvos, o pescoço com as suas veias salientes, o rosto de menino, os olhos redondos, os lábios finos, os caracóis clássicos dos cabelos. David, a obra-prima. Adão, o aprendiz encantado.
Quando voltou a Santiago trouxe consigo aquela iluminação que só a Arte renascentista lhe poderia proporcionar e começou de imediato a criar. Encontrou em atelier abandonado em Achada Grande e aí, com vista privilegiada para o Plateau, esculpiu o que a sua imaginação lhe soprava dias e noites a fio. Aos vinte e sete anos já era senhor de uma carreira artística consagrada, já considerava essencial apresentar-se ao público de forma excêntrica, tão excêntrica quanto a sua obra. Fez do seu próprio cabelo a sua imagem de marca: ora azul, ora vermelho, ora verde. Assim era Adão, o mais metrosexual dos cabo-verdianos, o que mandava vir cremes La Mer de Lisboa e camisas Giorgio Armani, o que mudava a cor dos seus caracóis todas as semanas e era odiado por uns e venerado por outros. Aparentemente indiferente aos comentários, continuava a cultivar a sua diferença e nem as comparações a Anacleto Swainsteiger o incomodavam… aparentemente. Swainsteiger era outro escultor da Cidade da Praia famoso pelas suas intervenções públicas sobre Arte Contemporânea mas, acima de tudo, pela sua pose de Rodin que insistia em fazer sua. Também por volta dos trinta, Anacleto, de cabelo rapado, pêra negra de artista, bigode reminiscente de Hitler e olhos verdes bifurcantes, gostava de ser apanhado a elevar o queixo ligeiramente para o lado direito e assim, no ar, acariciá-lo com o polegar, o indicador e o dedo do meio. Estes últimos não se mexiam, só o polegar tinha o direito de mimar contemplativamente aquele queixo de artista. Decente e Swainsteiger encontravam-se amiúde em acontecimentos públicos, vernissages, eventos culturais, muitas palmadinhas nas costas como convém a um bom pseudo, elogios rasgados à obra do “prezado colega” como convém a um bom hipócrita, partilha de teorias artísticas com quem quisesse ouvir… mas quando tudo acabava, as luzes se apagavam e o pano descia um ódio inexplicável os consumia. Um ciúme não sabiam de quê. Ímpetos violentos, quase assassinos.

Quando a morte da Dona Maria Ramantxada, residente na Rua dos Prazeres, se tornou pública pela voz de Vivian Espírito-Santo de Totta e Açores ambos negaram conhecer tal senhora. Esquivaram-se, cada um à sua maneira, aos comentários de café sobre o caso escabroso, remeteram-se ao silêncio da sua Arte. E nesse fim-de-semana de 14 e 15 de Junho esculpiram e choraram. Decente tentou uma fraquinha La Pietá, mas na sua versão o filho carregava a mãe no colo. Swainsteiger, mais visceral, esculpiu pedaços de corpo feminino sem nexo e no final, já na alvorada, cuspiu o seu desespero despejando várias embalagens de ketchup em cima da obra-prima.

quinta-feira, 24 de julho de 2008

Desabafo da Minhoka que está pelas pontas!

Citando a minha amiga Catarina Abreu, também "estou farta, fartinha, já não posso mais"! Não sei qual seria o motivo da sua indignação mas o meu é claro e está à vista de todos: Cabo Verde! Sim, já sei, é o país da morabeza, sim também já pude usufruir da tal qualidade de vida de que todos falam, as praias paradisíacas, ter tempo para almoçar em casa e ainda relaxar um pouco... sim, sim... já vi isso tudo. Mas e a Incompetência generalizada?? A Incompetência Capital? Ninguém fala disso? Ninguém escreve nos guias turísticos que o tempo médio de espera por um café é de dez a quinze minutos! Tostas então nem se fala... Ninguém diz que meio mundo adora deixar outro meio à espera, ninguém fala das faltas de respeito pela vida das pessoas, do prazer mórbido em marcar reuniões, consultas médicas, encontros de negócios... whatever.. para as 14h quando na verdade se pensa comparecer às 17h. E todo o mundo sorri, e todo o mundo tolera e todo o mundo diz: é assim, aqui é assim. Resignado. Com um encolher de ombros generalizado.

Pois eu digo: Assim Mete Nojo!! Assim não dá vontade nenhuma de estar aqui a batalhar!
É um país em construção? Então construamos de facto! DE FACTO! Com seriedade, honestidade, com vista a um país decente.

segunda-feira, 21 de julho de 2008

Maria Regateira ou Maria Ramantxada VI

Améliazinha acordou num sobressalto com os gritos que ecoavam no prédio. Acudam, acudam, chamem a polícia, um médico! Ainda em pijama e de cabelo desgrenhado, a professora veio espreitar às escadas e viu um sobe-e-desce apressado, um frenesim de pessoas que subiam ao andar por baixo do seu, entravam em casa da Dona Maria, soltavam um “ai que horror!” ou um “ai que impressão, credo!” e voltavam a descer até à rua. Ai meu Deus, Nossa Senhora de Fátima, bradou a professorinha para si própria, só pode ter acontecido alguma tragédia à vizinha. Ai valha-me Deus, deixa-me ir lá!
Com licença, ouvia-se uma vozinha fininha, meiguinha, docinha. Vozinha de diminutivo tal como a professorinha. Améliazinha. A terra que vira Maria Amélia nascer nem vila chegava a ser, era um daqueles lugares ermos, perdidos nas montanhas áureas de Trás-os-Montes, norte de Portugal, sul da Europa. Quando lhe perguntavam de onde vinha, ela respondia com ar de quem acabou de entrar pela porta dos fundos sem pedir licença, sou de Trás-os-Montes. Ligeiro, rápido e concomitante subir de ombros, olhos baixos de provinciana, maçãzinha do rosto timidamente ruborizada. Concluíra o curso de Língua Portuguesa na Universidade da Beira Interior e, não tendo reais perspectivas de emprego no seu país, decidiu candidatar-se a um daqueles programas europeus de nome complicado cujo objectivo implícito é “ajudar os coitadinhos dos pretinhos de África!”. Ora, tendo sido seleccionada, Maria Amélia, natural de Lugarejo-Nenhum, sentiu-se a Angelina Jolie versão Tuga: iria em missão para África ajudar os pobrezinhos. Coitadinhos! Chegada à Cidade da Praia muito se comoveu com as criancinhas desgraçadinhas da sua escola primária em Safende, muito chorou, triste e impotente, com os meninos de rua, os que pedem 5 escudos e um pão para comer, muitas bolas de berlim distribuiu pelas bocas esfomeadas, sujas e ainda com dentes de leite… enfim, Maria Amélia esquecia-se dos seus 34 anos de vida (namorado? Ai Jesus, era o que me faltava! Agora um homem para me vir tirar o sossego, não não, nessa não caio eu!) e dedicava todo o seu ser altruísta à ajuda voluntária aos necessitados, fracos e oprimidos.
Ao entrar em casa da vizinha viu as fardas da Polícia Nacional a farejar cada canto. Mas o que aconteceu? O que se passa? A Dona Maria sabe que estão aqui a bisbilhotar-lhe a casa toda? – inquiriu a vozinha de cana rachada. Ó menina, então não sabe que a Dona Maria foi brutalmente assassinada? A menina afinal quem é? Vizinha de cima? Então alto lá que já não vai a lado nenhum, precisamos falar consigo. Se forem lá bater os da Judiciária a menina não responda a nada e diga que quem está a tratar disto é a Polícia Nacional, está bem?
Coitadinha da Améliazinha que já nada ouvia e mesmo a figura do policial, que até era bem parecido, se desvanecia à sua frente. Brutalmente assassinada? Mas como? Por que motivo? E por quem?
Estando Amélia nestas reflexões nem se apercebeu de alguém que entrara com espalhafato. Só quando sentiu um encontrão no ombro é que despertou e viu. Viu-a. Não se conheciam mas eram uma espécie de arqui-rivais: uma era do Bem e outra era do Mal. Uma queria ajudar, a outra queria lucrar. Uma era Améliazinha, coitadinha, e outra era Vivian Espírito-Santo (Totta & Açores por matrimónio), jornalista classe A da televisão privada com mais audiência do país.
O metro e oitenta de Vivian, magra de cabelos escuros e escorridos que se demoravam em brilho até ao meio das costas, contrastava severamente com o metro e sessenta e cinco do corpinho gorducho de Améliazinha e respectivos caracóis loiros sempre escrupulosamente colocados atrás das orelhas. Vivian tinha a capacidade de entrar numa sala e deixar todos boquiabertos com a sua presença, a altura dos seus tacões Manolo Blahnik, a tez incrivelmente morena e uma voz autoritária, grave, de comandante. Era a cara da televisão privada cabo-verdiana Pivêt, contratada em Portugal por alguns milhões para vir aproveitar-se da miséria dos pretinhos de África. Coitadinhos! As condições que a jornalista tinha imposto para deixar a sua casa de Cascais e vir para o foco do Paludismo eram claras e estavam à vista de todos: mansão a paredes-meias com a do Presidente da República Pedro Pires, AUDI A4 com motorista privado, fins-de-semana na Europa para se inteirar das notícias do mundo de quinze em quinze dias e um salário com muitos zeros. Ao concluir a licenciatura em Comunicação e Marketing, Vivian tinha feito um juramento de honra à bandeira do Sensacionalismo, seu Deus em todas as horas da noite e do dia a quem votava a sua mais sincera dedicação. Ainda na semana passada, uma menina de onze anos terá sido alegadamente violada numa dessas aldeias do interior da ilha de Santiago. Imediatamente o AUDI pôs-se a mexer em direcção à notícia porque o público merecia saber 1. quem é a menina em questão; 2. quem são os seus pais, amigos e vizinhos; 3. como decorreu o processo da alegada violação ao pormenor, a saber: doeu? Não doeu? Se doeu, doeu muito? De zero a dez em quanto classificaria a dor? E sangue, terá a menina perdido? Muito ou pouco? Bem, vamos lá ser precisas, dava para encher um copo de água?
Vivian sentia-se satisfeita com o exercício da sua profissão. Ao jornalista cabia dar a informação, claro, mas também torná-la minimamente interessante, senão quem prestaria atenção ao seu bloco noticioso? A guerra das audiências era uma realidade e não seria ela, Vivian Espírito-Santo de Totta & Açores que iria ficar a perder.
Naquela manhã de meados de Junho ouvira dizer que alguém tinha sido brutalmente assassinado no Plateau. Vivian nem esperou que o motorista acabasse de polir o Audi, enfiou-se num táxi com o seu operador de imagem e lá foi em direcção à Rua dos Prazeres. Ao chegar à porta do prédio quis saber quem era a vítima. Maria Ramantxada? Que nome estranho, é pouco, tenho de arranjar mais pormenores e sobretudo sensacionais. Um breve inquérito no Covil deu-lhe o que precisava: com que então fama de ser deveras namoradeira…

Notícia de abertura do telejornal das 20h na Pivêt:

Uma mulher de cerca de cinquenta anos, e comportamento moralmente duvidoso, foi encontrada morta na sua casa no Plateau, na Cidade da Praia. (Os dentes brancos imaculados continuavam) Ao que a Pivêt conseguiu apurar, esta senhora dedicava-se a roubar os maridos alheios, logo terá sido obviamente assassinada e totalmente desmembrada por alguma esposa zelosa que, naturalmente e com toda a razão, vingou os desvairos adúlteros do seu marido com a referida senhora. Gostaríamos de acrescentar que é bem feita e que as autoridades competentes deviam legislar medidas contra estas mulheres sem vergonha que só sabem roubar os maridos das mulheres decentes.
Com o rigor e a isenção a que já o habituámos, uma reportagem de
(aquele sorriso brilhante e envaidecido) Vivian Espírito-Santo de Totta e Açores.

terça-feira, 15 de julho de 2008

O meu primeiro quase assalto


11h30 da manhã de Segunda feira: Minhokinha chega ao seu mais recente lar no Palmarejo, nata da elite da Cidade da Praia, carregando uma modesta mochila de couro com o seu ainda mais modesto computador, trabalhos de alunos, coisas de professor e dois saquinhos de compras de mulher que tem necessariamente de ser dona de casa. Ouve um restolhar de passos próximos e, ao virar-se para trás já na suspeita que something was wrong, um puto a menos dum metro de si. Tra bolsa, tra bolsa (tira o saco ou dá cá o saco!)! Minhokinha não queria acreditar! Sabia e apregoava aos sete e oito ventos que era uma questão de tempo, que era no mínimo estranho estar na cidade do crime-porque-sim-porque-nos-apetece e andar imaculada pelas ruas como se não existisse de facto, só sobrevoasse as desgraças alheias! Entoou um repetido Não! Não! Não! Não! enquanto se afastava do catraio e tinha tempo de verificar que o sem vergonha empunhava nada menos do que uma faca de cozinha para executar tal façanha criminosa! E uma faca de cozinha velha e com um ar muito triste, ainda por cima. Uma faquita que nem bifes cortaria com certeza, mas naquele momento virada a si daquela maneira pareceu-lhe uma daquelas côncavas e enormes que as senhoras da Praia Grande do Tarrafal usam para abrir côcos. O puto continuava Tra bolsa tra bolsa e Minhoka, desprotegida, resolve recorrer à técnica de defesa mais primitiva a que normalmente as mulheres recorrem: a goela. Minhoka brada na rua deserta, de obras e andaimes e futuros prédios de luxo: SOCORRO!! SOCORRO!! enquanto se afasta ainda mais da faca de ponta torta e acabada. O puto assusta-se e adverte logo que não vai magoar a Minhokinha, não a vai pisar, vai sim ser misericordioso e deixá-la seguir rastejando por entre os prados como se nada se tivesse passado. Desapareceu na praça do prédio e deixou a Minhokinha a tremer e com medo de voltar a sair de casa.


Não entendo como isto continua a acontecer, escandalosamente ainda à luz do dia e numa zona onde, à partida, já se sabe que existe esta tendência criminosa.
Depois das manifs dos cidadãos, da revolta generalizada, dos assaltos às entidades responsáveis pela segurança da cidade, depois das promessas eleitorais (A nossa primeira prioridade é a segurança), depois de todo o circo que se tem montado em torno do famoso kasu body, cabe perguntar, mas já sem réstea de paciência: PARA QUANDO UMA CIDADE NORMALMENTE SEGURA?

domingo, 13 de julho de 2008

Maria Ramantxada V

Quando as lojas comerciais fecham as portas e as pessoas começam a recolher às suas casas, o Plateau vai lentamente perdendo a vida. Uma ou duas mãos de gente à espera dos últimos autocarros, apoiando numa das pernas o peso do dia; alguns rapazinhos jogam à bola no meio da merda espalhada nos becos da Ponta Belém; uma mulher rota escrutina uns sacos de lixo esquecidos num poste; um louco imundo dorme na porta duma casa e sonha que é rei; dois miúdos da vida vagueando perdidos em busca de vinte escudos; as portas do único hipermercado, curiosamente chamado Palácio do Consumismo, escancaradas debochadamente até tarde para quem ainda quiser vir comprar.
Às 20h00 são cada vez menos os que se passeiam pelo centro da cidade e é a esta hora que o poeta deixa o seu castelo. “Irreverente e indomável espadachim da sorte e da morte, poeta de vento sem tempo”, Arménio Vieira é, antes de qualquer outro atributo, antes até de ser Arménio, o Conde: auto-denominado com orgulho e amiúde referido por todos os que o conhecem com certa reverência. Arménio, como todos os poetas, é um animal noctívago, não por recusar as delícias do dia mas por insistir em escrever apenas à noite. Começa por sair quando todos os outros regressam e vai pelas ruas desertas, só ele e os cães sarnentos, a recitar Rimbaud, Borges, Baudelaire, Pessoa, tiradas inteiras da Eneida, da Odisseia, o seu prazer literário não tem fim. Esta é a hora em que permite que os alucinantes relâmpagos que lhe ocorrem durante o dia na esplanada central, local diurno de culto perseverante, assentem na poeira da mente e o labor do artífice o domine. Fuma um Marlboro atrás do outro e murmura e recita-se. É um grande egocêntrico, ama a sua lírica acima de todas as outras. É o “tal poeta vadio que olha para as nuvens a ver se algum anjo deixa cair o cigarro”. Já passou certamente a casa dos cinquenta mas conserva um sorriso de puto atrevido que, juntamente com a franjinha preta desordenada e uma ligeira sarda na bochecha, lhe emolduram uma expressão quase pueril.
Todas as manhãs, sem falhar uma, Arménio sai do seu castelo, casa secular, imponente e decadente, como convém a um verdadeiro poeta, no centro do Plateau e desce a rua até à esplanada central coberta por três grandes guarda-sóis. Cabelo oleoso por regra, ligeira queda na nuca que, de uma maneira muito estranha, o assemelha ao Papa Bento XVI, camisa solta e coçada, irremediavelmente aberta até quase ao umbigo, ligeiro vislumbre dum colar fino de ouro, calças de ganga dobradas em baixo a fazer lembrar um banhista em férias, havaianas azuis incrivelmente modestas que suportam o peso da criatividade e da (os ingleses diriam, e bem) uniqueness de ser Arménio. Ossos das ancas ligeiramente inclinados para a frente (a marcar dez horas e dez minutos no relógio do seu corpo magro), andar descontraído, ponta de cigarro a queimar entre os dedos da mão direita nem que chovam picaretas, Arménio Vieira, o tal que grita:

“Os sapos coaxam, os corvos crocitam,
Cristo falava, Paulo escrevia. Eu sou
como sou. Tenham paciência.”

Passa o dia à volta duma mesa a conversar com os amigos, debate assuntos tão ecléticos como desporto, mundo animal, mulheres, história, política nacional e internacional, literatura e arte em geral; é viciado no tabuleiro de xadrez (a tal ponto que junta sempre uma plateia atenta de jovens à sua volta) e um mulherengo incorrigível. Mulheres não lhe faltam mas considera-as vãs. Quando qualquer par de nádegas sai de cima de si num suspiro final meio abafado, Arménio só pensa em masturbar-se logo a seguir. Não tem prazer, ninguém lhe sabe a nada. Desde aquelas ancas volumosas de há mais de trinta anos, do cheiro a volúpia e a pecado que ela guardava na dobra do pescoço, desde as noites de sexo gritado e espancado, de versos obscenos sussurrados numa mordidela, desde esses tempos que o poeta não conhecia o verdadeiro sabor do amor sexual, o tal que não se compara a qualquer tipo de vulgar brio de corpo. Desde que Maria, de tamanco na mão, lhe apregoara em tom alto e assertivo “Nunca mais te quero ver” ele decidira não mais amar, não mais se entregar a quem quer que fosse. Cumpriu o pedido e nunca mais a procurou. Se por ventura a visse passar na praça da esplanada, a dois metros de si, fazia de conta que aquelas ancas roliças e aquele peito almofadado nunca tinham sido beijados por si. Nunca tinha mordido aquelas pernas, não conhecia de cor o cheiro do seu cabelo.

Bianco & Nero


De repente compreendeu!
A sua mente deu um estalido ao rodar a chave na fechadura e...
luz branca
inundada de negro.
Ou luz negra
invadida de branco?
Pouco importava.
O clamor subia
as faces ruborizavam
e assim,
com esta certeza,


sentiu-se eternamente triste!

domingo, 6 de julho de 2008

Maria Ramantxada IV

Dirce levantava-se todos os dias pontualmente às 5h45. Erguia-se da esteira cautelosamente para não acordar o marido, enrolava o longo lenço verde na cabeça deixando só um pouco de cabelo descoberto, vestia uma túnica, garrafão de plástico na mão, abria a porta sem fazer o mínimo ruído, deixava-a encostada para não bater e saía em direcção ao chafariz. O chafariz do bairro periférico onde morava, Lém-Cachorro, era paragem obrigatória para todas as mães de família a partir das primeiras horas da manhã. Sem água canalizada, teriam de ir buscar os litros necessários para a lida diária. Garrafão equilibrado na cabeça, mão na cinta, voltavam para casa, acordavam os maridos e os filhos, faziam o pequeno-almoço, deixavam as crianças a alguma velha que olhasse por elas, juntamente com uma embalagem de papas para bebé e uma peça de fruta embrulhadas num saco de supermercado, e partiam para o trabalho. Trabalhavam na cidade para as senhoras que tinham dinheiro, dedicavam dez horas diárias à casa e à família de outra pessoa, cozinhavam, limpavam, lavavam, passavam a ferro, cuidavam e ensinavam as primeiras palavras aos seus filhos por dois tostões mensais. Ao final do dia, cansadas das vidas dos outros, voltavam às suas, recolhiam ao bairro, iam buscar a prole que já nem sentia a sua falta, preparavam o seu jantar, arrumavam a sua cozinha, viam a novela e caíam de novo na esteira. Dirce era uma destas mulheres-coragem, mulher teimosa que não quebrava nem cedia. Todos os dias, sem falhar, Dirce chegava pontualmente às 8 horas da manhã à Rua dos Prazeres. Abria a porta e encontrava a D. Maria, já pronta para sair, a tomar o pequeno-almoço.

Aquela manhã de 14 de Junho não era diferente: chave a rodar na fechadura, a sala iluminada pelo sol, na banca da cozinha alguma loiça à espera de ser lavada… e D. Maria? Por que não estava sentada à mesa a ver as notícias da RTP África e a comer torradas com mel? Dirce pensou que talvez a senhora tivesse adormecido. Procurou não fazer barulho enquanto organizava a loiça para lavar. A atmosfera da casa estava pesada, Dirce arrepiou-se e não compreendeu porquê. As janelas estavam fechadas, nem uma ponta de corrente de ar. Enquanto misturava o detergente na bacia com água, sentia alguém a mirá-la fixamente. Voltava-se para trás e nada, ninguém. Mas alguém a observava, ela sentia que alguém a rodeava, praticamente lhe passava os braços pelo pescoço e quase a esganava. O que era aquilo? Decidiu parar com a lavagem da loiça e percorrer todas as divisões da casa, certificar-se de que a D. Maria dormia de facto. Saiu da cozinha, atravessou a sala, espreitou a casa de banho à esquerda, nada, tudo na mesma. Continuou a caminhar pelo corredor em direcção aos quartos. Engoliu em seco. Um peso no coração, um aperto no peito, declarada falta de ar. O quarto de visitas estava exactamente como o tinha deixado na tarde anterior, até a tábua de passar a ferro ainda estava montada. Só faltava o quarto da senhora, mas Dirce agora sentia que algo definitivamente não estava bem. Teve medo de seguir em frente. Parou diante da maçaneta. Ia espreitar de mansinho, a senhora que desculpasse mas ela não descansava enquanto não visse com os seus olhos que estava tudo bem. Rodou a maçaneta doirada, a porta abriu lentamente com um contínuo mas quase imperceptível gemido de suspense semelhante aos imortalizados por Hitchcock.

A claridade que inundava o quarto era tão berrante que, num primeiro segundo, cegou a jovem criadita. Levou a mão aos olhos tentando proteger-se da luz feroz e quando os voltou a abrir

A boca escancarou

O coração esbugalhou

O corpo petrificou

e Dirce, inútil, caiu no chão, peito para o céu, os olhos completamente abertos quão inertes, a boca em ó e uma expressão de verdadeiro terror que lhe perpassava o corpo hirto.

Em cima da cama, pedaços de Maria. As pernas simetricamente dispostas em V, salientando-se o sexo totalmente carbonizado, um braço esquecido debaixo duma almofada carmesim, o tronco nu e esventrado por entre os lençóis ao centro da cama e a cabeça, negra e esmurrada como uma bola de futebol aos noventa minutos, tinha caído da cama e rolado até ao banco da cómoda onde Maria se costumava maquilhar.

Duas mulheres mortas num quarto espirrado a vermelho-vivo!

terça-feira, 1 de julho de 2008

= Núcleo Duro



Tenho saudades dos meus irmãos!

A Serigaita anda lá para a China, o Caçula armado em pintor inglês, o Gémeo a deambular no seu génio de marfim! Como vos amo, amo-vos a todos como Campos amava as máquinas e, neste momento, também vos queria possuir, deixar um pouco de mim em vós e sentir-vos em mim.

2+2...


Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem achei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,

Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem,
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.

Fernando Pessoa