Boa noite, Cabo Verde, hoje é sexta-feira, dia de comentarmos a imprensa semanal aqui no Grau Zero, o programa intelectual da televisão nacional. Comigo no estúdio tenho os comentadores habituais…
Era sempre assim no último dia da semana. Adão Decente ocupava o pequeno ecrã com o seu rasgado sorriso branco de dentes meticulosamente coordenados, arranjados e polidos. Era um comunicador nato, apresentador de vários programas de televisão, imagem de marca de variadas campanhas de saúde, de cidadania e de desporto. Adão era o que se podia chamar o namoradinho de Cabo Verde quer na popularidade que conseguia reunir, quer no número de fãs histéricas, normalmente miúdas de liceu, que o perseguiam nas ruas. Nem trinta anos tinha mas pose de quem já viu e viveu tudo, já desbravou mares nunca antes navegados, conheceu um número infinito de mulheres, continentes misteriosos, experimentou o exotismo de cada lugar por onde passou, leu tudo, ensinou mais ainda e esculpiu… esculpiu o mundo que se vergava a seus pés. Adão Decente encarnava na perfeição os ideais decadentistas dos poetas franceses de fin de siècle, Baudelaire, Verlaine, je suis l’empire à la fin de la decadence, respirava as imagens por eles criadas do artista como uma ave solitária, dolorosamente encerrado na sua torre de marfim lá do alto onde contemplava a Decadência Generalizada, Nós, Cidadãos Comuns, Meros Mortais que habitavam a Cidade da Praia. Dessa certeza de ser diferente, desse impulso de se sentir único, nascia a necessidade de Adão se mostrar irreverente, peculiar, europeu em África. Embora Cabo-Verdiano de nascença, muito cedo se tinha acostumado a fazer as malas e a conhecer novos lugares. A sua vida de saltimbanco tinha começado ainda em criança, rodando os vários lares de adopção das ilhas: Mindelo, Tarrafal de S. Nicolau, Vila de Sal-Rei, S. Filipe do Fogo e, por último, Praia, quando já era um rapazinho de doze anos. Cedo entendeu que era diferente dos outros meninos e precocemente perseguiu o sonho da escultura, resultado duma noite em que fora esquecido na sala de leitura da Biblioteca Nacional pelas acompanhantes do lar. Nessa noite branca, tendo à sua disposição todas as salas normalmente vedadas ao público, Adão Decente apaixonou-se por Miguel Ângelo, pela sua Capela Cistina mas sobretudo, e com fervor religioso quase doentio, pelo David: homem de pedra mais perfeito do que os mortais, mais macio do que os ombros de uma mulher, mais voluptuoso do que o colo de uma meretriz. Nesse dia Adão prometeu a Deus que iria esculpir o David cabo-verdiano tão perfeito como o italiano. E chamar-lhe-ia Adão, nome do primeiro homem na Terra, nome que esconde alguma pureza virginal, nome da mente genial que o terá criado.
Cresceu, estudou muito, conseguiu todas as bolsas de estudo a que se candidatou e que o levaram à Europa e ao Brasil. Ingressou nas Belas Artes de Lisboa e desde o primeiro dia começou a trabalhar concomitantemente num barzinho reles da zona de Santos com o objectivo de juntar dinheiro para ir a Florença. No final do curso foi de comboio e mochila às costas. Quando, glorioso, pagou o bilhete de estudante na Galleria dell' Accademia e entrou no grande salão de exposições, sentiu-se pequeno, minúsculo. Virou à esquerda e aí, ao fundo do corredor ladeado por esculturas inacabadas, esculturas-ensaio, o Grande, o Incomensurável, o Magnífico David. Como era ainda mais belo ao vivo, colocado naquele pedestal e iluminado por aquela cúpula de vitrais azuis e amarelos por onde entravam os raios de sol florentinos e tornavam David num Deus pagão. Rodeou-o, estudou-lhe minuciosamente as articulações, as veias, falange-falanginha-falangeta, as unhas os joelhos, o sexo, admirou a serpente que se cruzava nas suas costas e que o herói empunhava em pose de vitória, a curva dos ombros alvos, o pescoço com as suas veias salientes, o rosto de menino, os olhos redondos, os lábios finos, os caracóis clássicos dos cabelos. David, a obra-prima. Adão, o aprendiz encantado.
Quando voltou a Santiago trouxe consigo aquela iluminação que só a Arte renascentista lhe poderia proporcionar e começou de imediato a criar. Encontrou em atelier abandonado em Achada Grande e aí, com vista privilegiada para o Plateau, esculpiu o que a sua imaginação lhe soprava dias e noites a fio. Aos vinte e sete anos já era senhor de uma carreira artística consagrada, já considerava essencial apresentar-se ao público de forma excêntrica, tão excêntrica quanto a sua obra. Fez do seu próprio cabelo a sua imagem de marca: ora azul, ora vermelho, ora verde. Assim era Adão, o mais metrosexual dos cabo-verdianos, o que mandava vir cremes La Mer de Lisboa e camisas Giorgio Armani, o que mudava a cor dos seus caracóis todas as semanas e era odiado por uns e venerado por outros. Aparentemente indiferente aos comentários, continuava a cultivar a sua diferença e nem as comparações a Anacleto Swainsteiger o incomodavam… aparentemente. Swainsteiger era outro escultor da Cidade da Praia famoso pelas suas intervenções públicas sobre Arte Contemporânea mas, acima de tudo, pela sua pose de Rodin que insistia em fazer sua. Também por volta dos trinta, Anacleto, de cabelo rapado, pêra negra de artista, bigode reminiscente de Hitler e olhos verdes bifurcantes, gostava de ser apanhado a elevar o queixo ligeiramente para o lado direito e assim, no ar, acariciá-lo com o polegar, o indicador e o dedo do meio. Estes últimos não se mexiam, só o polegar tinha o direito de mimar contemplativamente aquele queixo de artista. Decente e Swainsteiger encontravam-se amiúde em acontecimentos públicos, vernissages, eventos culturais, muitas palmadinhas nas costas como convém a um bom pseudo, elogios rasgados à obra do “prezado colega” como convém a um bom hipócrita, partilha de teorias artísticas com quem quisesse ouvir… mas quando tudo acabava, as luzes se apagavam e o pano descia um ódio inexplicável os consumia. Um ciúme não sabiam de quê. Ímpetos violentos, quase assassinos.
Quando a morte da Dona Maria Ramantxada, residente na Rua dos Prazeres, se tornou pública pela voz de Vivian Espírito-Santo de Totta e Açores ambos negaram conhecer tal senhora. Esquivaram-se, cada um à sua maneira, aos comentários de café sobre o caso escabroso, remeteram-se ao silêncio da sua Arte. E nesse fim-de-semana de 14 e 15 de Junho esculpiram e choraram. Decente tentou uma fraquinha La Pietá, mas na sua versão o filho carregava a mãe no colo. Swainsteiger, mais visceral, esculpiu pedaços de corpo feminino sem nexo e no final, já na alvorada, cuspiu o seu desespero despejando várias embalagens de ketchup em cima da obra-prima.