sexta-feira, 30 de maio de 2008

Maria Regateira ou Maria Ramantxada: a capeverdean tale

Oito e quinze da manhã: o tacão largo de madeira da sandália de tiras de pele barata e berrante que calça o pé direito de Maria Regateira bate, com algum estrondo, no cimento da rua. Será uma espécie de castanhola sevilhana esse ruído que nasce do beijo matinal da sandália da mulher das ancas volumosas a um dos passeios esburacados do Plateau. Quando o seu tacão ecoa na Rua dos Prazeres todos param para a admirar. E ela sabe. E ela gosta. Aliás, dizendo a verdade, ela prepara-se meticulosamente duas horas antes para esse momento, a sua glória, a saída para a rua onde vai desfilar, vezes sem conta, o seu corpo de tentação e os seus trapinhos made and bought in China.
Maria já não é muito nova, mas quem admira o seu porte altivo e confiante de gaiata arrisca-a pela casa dos vinte... vinte e muitos, vá. Mas não. Maria já viu bastante e viveu mais ainda. A idade nunca a revela, nem depois de tragada uma garrafa di kel grogo sabi numa das tascas lá da rua, o Covil, com os seus companheiros, muitos deles maridos das raparigas que andaram consigo na escola. Se a idade é um grande mistério, o número de amantes contabilizados equivale ao terceiro segredo de Fátima. Os amigos tentam puxar por ela. Eh Maria, tás a dar uma de ingénua ou mesmo de virgem? Modi? Conta lá, carago, conta lá! Afinal, quem já passou pela tua rede?
A rede. Muito se conspirava acerca da enorme rede balão vermelha, originalmente para uma pessoa mas que admitia grandes cavalgadas entre duas ou três. Dja bu balansa na redi di Maria Ramantxada? - perguntavam os homens entre copos e bocas desdentadas, escancaradas a bafo de álcool, linguiça e vício. Quem terá eventualmente balançado parece ter saído de lá com um compromisso de honra selado não se sabe com que saliva, mas implacável, inquebrável, nem sob tortura confessável. O que se sabe é que há muito fladu fla, muito diz que disse mas nada de concreto, nenhuma ponta por onde se pegasse.
Aureolada por este mistério, olhada sempre com muita curiosidade e alguma inveja beata, Maria Regateira saía de sua casa na Rua dos Prazeres pontualmente às 8h15, levando consigo um porta-moedas preto que lhe dera a sua avó e dois sacos de plástico para não ter de os pagar no mercado. Já são mais dez escudinhos que se poupam, ouvia ainda a voz da mãe quando pegava nas bolsas.
To be continued na próxima semana. Que se resgate o folhetim!

Título ainda não vislumbrado


Ouvem-se os nomes, a sentença. Cada uma das sete meninas levanta-se, olhos fitos no chão, e encaminha-se para a entrada. A oitava, a ruiva, pede para ir no grupo. Tem de aguardar.


Chamam-na para a fotografia numa sala com flash. Não sorri. É grande, já é grande!


Seguem-se as outras. Uma voz esganiçada de peixeira de mercado chama cada uma. Elas vão, elas voltam e riem-se em cochicho. Fechadas num corredor escuro e frio duma sala dos fundos e sentadas num banco negro corrido.

Assistem, apertadas, ao desfile dos utensílios. Um a um. Enquanto a mulher da limpeza empunha uma esfregona e tenta fazer uma piada brejeira. Algumas riem, outras apenas sorriem, mas de imediato escondem a cabeça por entre os braços apoiados no corrimão. Ah... os segredos e os desabafos que se escondem sob aqueles níveos azulejos simetricamente hospitalares.

Só a ruiva não esboça sequer um começo de sorriso. A ruiva suspira audível, a sua avó sempre dizia que um Ai bem dado (isto é, prolongado, com a quantidade certa de ar expirado: Aaaaaaiiiii) muito alivia!


Irrompe o Maquilhador, hispânico e recto. Olhando para cada par de olhos à sua frente atira assim: alguém tem tosse? alguém bebeu? alguém comeu? alguém sente um aperto no peito?

Ninguém respondeu, mas todas sentiam o coração enclausurado numa caixinha rota e frágil muito pequenina que quase o impedia de bombear.


Eu bebi chá, dei dois goles de chá antes de vir, confessou a ruiva, dando a conhecer a todos a sua voz entrecortada.

O Maquilhador nem quis ouvir mais nada, todo o seu trabalho estava comprometido, com chá nada feito, nada de preparação prévia, a ruiva iria para o desfile sem o mínimo de glamour, sem corrector de olheiras, sem fond-de-teint, sem gloss, o mínimo brilho, podia dizer adeus às sombras e ao rímel, pestanas volumosas e bem desenhadas... com chá nada feito! Peremptório!


Ouvem-se os primeiros nomes gritados lá do fundo. A menina levanta-se, a outra também. Riem-se para as restantes para afugentar o medo. O medo de não voltar.

Desaparecem no fim das escadas, rumo ao fundo do edifício. Silêncio. As meninas que ainda esperam no banco corrido já não riem. Mascaram os seus pesadelos com olhares cúmplices de confiança.

Mais dois nomes, mais duas que se levantam. A ruiva fica a vê-las. A porta está aberta. As meninas descem as escadas, tiram as roupas, vestem o vestido da moda. Levam todos os seus objectos dobradinhos em quatro debaixo do braço. Se me perder, se ninguém me encontrar esta sou eu. Chamam as luzes da passerelle. As meninas têm de entrar. Assim, despojadas de tudo o que lhes é próximo, são as meninas de sua mãe, as meninas das suas casas de bonecas, as meninas que ainda babam na almofada.


A ruiva fica de fora. Não vai por causa do chá e assiste à entrada de cada uma. Todas a fitam com um sorriso. Todas se despedem em verde água e partem em direcção à luz.

quarta-feira, 28 de maio de 2008

Palavras que leio hoje

“O corvo voa como uma navalha arremessada à boca daquele que escreve. Vem pousar no ombro luminoso da fala. Segreda àquele que escreve palavras negras, tão negras quanto as suas asas o podem ser:

- Não houve um só dia em que não me tenha apaixonado por ti. Em que não tenha pensado, em pleno voo, desmembrar-te à bicada. Apenas te quero dizer, Alexandre, que cheguei a entender a linguagem límpida dos pássaros, a ler o nosso futuro nas entranhas das vítimas, a vencer o medo, as serpentes por meio de encantamentos, a evocar as sombras, a escavar a cidade até aos nossos abismos profundos, a fazer do dia noite e da noite fazer dia.
(…)

Ficas assim, o suor escorrendo-te da fronte, os lábios estremecendo, as mãos aflitas sobre o peito – os olhos esbugalhados a perscrutarem no escuro os olhos felinos dalgum aéreo visitante.

Por vezes, não conseguimos viver com aquele que amamos – e por ele perderíamos tudo, incluindo a razão.

Vive-se sozinho, meio acordado, numa espécie de torpor. E no interior das pálpebras fazemos aparecer o rosto amado.

Gostaríamos que estivesse aqui, ao alcance das palavras que reinventamos para lhe sussurrar, ao alcance da mão e da boca, ao alcance dos sentidos e do desejo imediato.

Um ardor estranho sobre a pele e nos olhos impedem-me de continuar vivo. Morro sem pressa. Começo por cegar para conservar o teu sorriso – não o quero ver afastar-se para sempre, na velhice ou num esgar.”

“Do ardor da paixão à morte no poema”, Dispersos, Al Berto

sexta-feira, 23 de maio de 2008

Ná, Ó Menino ná














Ná, Ó Menino ná


Ô rosto doce de odjo maguado,
Es bo cudado
Botal pa traz
Nhor Dés ta dano um bida de paz
De odjo maguado

bis
Ná, ô menino ná.
sombra rum fuji de li!
Ná, ô menino ná,
Dixa nha fidjo dormi

Sono de bida, sonho de amor
Ou graça, ou dor,
Es ê nós sorte...
Se Deus, más logo, mandano morte,
Quem que tem medo
Ta morrê cedo.

Toma nha ombro, encosta cabeça
Já n'dabo peto,
Amá "ragaz"
Ô espirito doce, ca bo tem pressa
Deta cu jeito
Dormi na paz

música popular cabo-verdiana cantada na sétima noite do nascimento duma criança.

quinta-feira, 22 de maio de 2008

"Jamais houve alma mais amante ou terna do que a minha, alma mais repleta de bondade, de compaixão, de tudo o que é ternura e amor. Contudo, nenhuma alma há tão solitária como a minha - solitária, note-se, não mercê de circunstâncias exteriores, mas sim de circunstâncias interiores. O que quero dizer é: a par da minha grande ternura e bondade, entrou no meu carácter um elemento de tristeza, egocentrismo, portanto de egoísmo, produzindo um efeito duplo: deformar e prejudicar o desenvolvimento e a plena acção interna daquelas outras qualidades, e prejudicar, deprimindo a vontade, a sua plena acção externa, a sua manifestação. (...)

Uma das minhas complicações mentais - mais horrível do que as palavras podem exprimir - é o medo da loucura, o qual, em si, já é loucura!"

Notas Íntimas, Fernando Pessoa

quarta-feira, 21 de maio de 2008

The Survival of Minhokinha


Caríssimos amigos e amigas,

a Minhokinha esteve em coma! Coma profundo! É verdade, um desses vírus quase mortais apoderou-se dela e fê-la prostrar-se numa maca ligada ao pii... piii duma máquina. Foram dias difíceis, não se via "luz num país perdido", não se via nada! Contudo, num desses golpes miraculosos da moderna medicina, Minhokinha foi resgatada e sobreviveu. Está ainda sob vigilância médica e ainda inspira alguns cuidados nas próximas horas, mas o pior já passou. Minhokinha acordou!

Aos que nunca deixaram de acreditar,
aos que nunca deixaram de amar,

cá fica um sorriso :)

e até muito em breve!

sexta-feira, 2 de maio de 2008

É já amanhã!!


Há muitos muitos anos fui apresentada a uma nova forma de pensar: Al-Qaerva. Primeiro resisti, claro está. Que não era certo carimbar este grito em todos os pontos da cidade, que não seria dessa forma que as mentes se iriam abrir, que o que talvez estivesse em risco fosse uma ou duas noites atrás das grades. Nada resultou, nem o charme mais elaborado. Al-Qaerva cresceu e hoje faz parte da sociedade portuguesa... ou pelo menos de uma parte significativa da sua camada cogitante. Cerca de seis anos depois, Minhokinha tem forçosamente de se render às evidências, concordar que quando o ideal e a perseverança se encontram os braços não podem baixar, inchar de orgulho e fazer uma grande vénia às actividades cívicas e lúdicas promovidas sob a sua alçada.

Al-Qaerva: Evita o Tráfico, Planta em Casa
http://al-qaerva.blogspot.com


E não se esqueçam:

Dia 3 de Maio – Marcha Global da Marijuana 2008

Lisboa: Encontro a partir das 14h00 no Jardim das Amoreiras (Mãe d'Água).
Partida do Largo do Rato às 16h00, com destino ao Largo de Camões.

Porto: Concentração a partir das 15h00 na Praça do Marquês.

Destino: Praça da Liberdade


Coimbra: concentração a partir das 15h00 no Largo da Portagem com destino à Praça 8 de Maio.

A Muda: Final Chapter

Dá-se assim por terminada a história da Muda. The red curtain must close. Muito mais haverá para contar se preservarmos a capacidade de observação e, claro, a imaginação. Que voe um abraço muito especial à senhora que, sem saber, inspirou esta narrativa. Até breve!


A Polícia Judiciária imediatamente pôs a fotografia do Gustavinho a circular no país e até em Espanha. Dois dias depois foi apanhado na Trafaria com os braços muito abertos a saltitar e gritar cucrrruuu, cucrrruuu. Coitado, deu em tolo foi o que foi. A Judiciária prendeu-o e a TVI fez saber que a responsável por aquela apreensão tinha sido a D. Almerinda, residente no rés-do-chão do número 49 da rua de Nossa Senhora das Graças, Braga.

Nos dias seguintes, todos os talk-shows falavam na bravura daquela mulher. Muda mas sem medo. Aquilo sim era um exemplo. E a capacidade de comunicação? Incontestável, Surpreendente, Nunca Vista! Os principais cronistas dedicaram-lhe os seus escritos; os locutores de rádio referiam-na constantemente entre louvores; os apresentadores de televisão não conseguiram ignorá-la e, quando viram o que a Muda trazia em share, a publicidade e a solicitação foram aumentando; vários espectadores ligaram para os programas de entretenimento a pedir a presença da senhora; notas de rodapé então nem se fala, menina. Portugal inteiro queria a Muda!

Entretanto, não sei bem como, as senhoras amigas da Muda começaram-se a organizar, a escrever cartazes e numa bela manhã abalaram todas para o Governo Civil de Braga. Queremos a Muda na TVI! Maior Participação da Muda na Vida Pública! Quem Fala Assim Não É Gago! Muda à Presidência! Enfim menina, pode imaginar as palavras de ordem. A cidade aderiu em peso! Em uníssono, Muda para aqui, Muda para ali, o singelo encontro entre as amigas da senhora transformou-se numa grandiosa manifestação nacional. Do Governo Civil alugaram umas camionetas e rumaram a Lisboa às apitadelas na auto-estrada, até deu na televisão. A Muda ia na carreira da frente, toda em proa qual Vasco da Gama em direcção às Índias. Na Assembleia da República o mesmo chinfrim! Muda Ao Poder! O Povo É Quem Mais Ordena e por aí fora.

Qual perdigueiro a farejar um rasto de carne, José Eduardo Moniz viu de imediato milhões de euros nesta manifestação popular. Prontamente a convidou para o programa do Goucha e as audiências triplicaram nessa manhã. Aplausos, muitos aplausos, infindáveis reportagens na ‘Maria’ e na ‘Mulher Moderna’, programas de televisão exclusivamente dedicados à sua vida… num instantinho a Muda passou a ser um fenómeno nacional e já com interesses declarados por parte da televisão espanhola. A tudo respondia com o seu sorriso aberto e um aceno à Lady-Di.

Depois de um mês inteiro a participar nos mais variados programas da TVI, relatando a vida de quem sabia e não sabia e mesmo partilhando anedotas picantes, veio a contratação da sua vida. Parece que o Moniz lá reconheceu que o povo não passa sem a Muda e, numa estratégia de marketing inédita, despediu o Júlio Magalhães e colocou a Muda na cadeira de pivot do telejornal todas as noites às 20h em ponto. Logo será o seu primeiro serviço noticioso!

De repente estremeci com o som metálico e irritante que saía do telemóvel do meu vizinho. Este, não estando de todo habituado a que o aparelho de facto tocasse, passou largos segundos a ignorá-lo. Levantei as sobrancelhas e apontei o seu bolso com o queixo. É o meu? É o meu? Ah, pois é… nem me lembro que tenho um destes. Emergência doméstica, que é como quem diz rotura de canos, impede-o de continuar a fitar o meu ar embasbacado. É a Ritinha, menina, tenho de ir. Diz que a cozinha está que parece uma piscina.

Enquanto o acompanhava à porta, o inquérito habitual: então quanto tempo fica desta vez? E quando é que casa, menina? Veja lá, olhe que não queira ficar para tia. Sorrindo amareladamente despedi-me e fiquei a vê-lo descer no elevador.