segunda-feira, 31 de março de 2008

Antipoema

Já sei a eternidade: é puro orgasmo.
Como assim, meu caro Drumond,
se o que se segue ao sémen
são as sobras de uma laranja
cortada em dois, sendo que
uma das metades é apenas a casca
lembrando a pele que as múmias
costumam ter, enquanto a parte
que teima em ficar redonda
é só a metade de uma geometria
que já foi doçura e polpa,
agora acre e assassina mais que a faca,
ao lado da qual jaz, definitivamente torpe,
já que as próprias moscas, apavoradas, fogem.

Mitografias, Arménio Vieira (2006)


Quanto a esses escribas de grande saber que vieram depois dos deuses, os seus nomes viverão mesmo depois de eles desaparecerem e de os seus parentes serem todos esquecidos.

A narrativa que se segue é sobre um desses letrados. […]
O escriba deteve-se junto a um enorme cartaz que dizia: O Faraó, nosso Imperador e Guia, tem um olho sempre aberto, mesmo quando dorme. Tende cautela, conspiradores, os crocodilos do Nilo adoram carne humana.
Em seguida, lembrou-se de que se lhe esgotara a erva para cachimbo. Arrastou as solas até uma lojeca e ali pediu um pacote de Populares.
- Ponha na conta do Sumo Sacerdote, sou neto dele – disse ao empregado.
- Neto de Sua Eminência, andas sem taco, pedes fiado e fumas Populares. Caramba! – exclamou o sujeito. […]
E assim, o escriba egípcio foi conduzido à presença do faraó.
Sua Majestade Amenófis XXVIII era zarolho, pequenino e muito gordo. Tinha uma cabeçorra calva (se bem que disfarçada por uma monumental peruca) e ostentava uma grande verruga na ponta do nariz.
O escriba, ao dar-se conta desta profusão de atributos físicos, sentiu uma vontade louca de rir. Mas, recordando-se dos vorazes crocodilos mencionados no cartaz, começou a tiritar de frio, a despeito da brisa quente que penetrava através de larguíssimas janelas.
- Ora bem – preambulou Amenófis XXVIII – tu és, realmente, neto do Sumo Sacerdote, por conseguinte um dos ramos mais ilustres da grande árvore nascida da cabeça do divino Toth, que descobriu a Estrela Polar, inventou os três alfabetos, dividiu o firmamento em onze céus e o ano em duas estações, fabricou o relógio solar de três ponteiros e ensinou que o tempo no seu todo é composto pelo presente, pelo pretérito e pelo futuro?
- Certamente que não vou jurar nem tão-pouco garantir. No entanto, é o que se diz por aí – respondeu o escriba.
O Faraó mordeu o lábio inferior e a seguir disse:
- Começaste mal, jovem escriba. Aqui no Egipto Sagrado ou há certezas ou não há. Toda a dúvida é uma ofensa aos deuses, de um dos quais eu, vosso Imperador, sou a encarnação. Sendo assim, concedo-te um prazo de cinco dias para que descubras a verdade. E tem cuidado, os crocodilos azuis estão com fome e nunca dormem.
Durante um bocado, Amenófis entregou-se a um jogo curioso: fechou e abriu várias vezes o olho bom. Finalmente ajuntou, martelando as palavras:
- Amon-Rá é o maior. Eu, a encarnação do divino Horus, sou Imperador do Alto, do Médio e do Baixo Egipto. A Farolina é a Imperatriz de todas as imperatrizes. O rio Nilo nasce no Paraíso. O boi Ápis é deus. O livro de Tots é indestrutível. O Egipto é a mais poderosa nação do Mundo. Não é assim?
- Absolutamente – respondeu o escriba. – Tudo quanto Vossa Majestade acaba de afirmar é verdade… sem margem para dúvidas. Assim foi dito, assim será escrito.
- Ainda bem – rematou o Faraó. – Agora põe-te a mexer. E não te esqueças do prazo: são quatro dias mais um, improrrogavelmente.

O Eleito do Sol, Arménio Vieira (1990)

Por que não lemos Arménio Vieira?


O apontamento que aqui deixo hoje nasce da revolta já quase enraizada em mim. Por muito que me esforce, não consigo compreender por que continuamos a votar este escritor genial ao mais declarado ostracismo. Não teremos ainda aprendido a lição que este e outros países nos têm dado ao longo da História? Temos obrigação de distinguir, honrar e homenagear os nossos homens e mulheres das mais variadas expressões artísticas em vida...e não, como é costume, depois do véu sombrio e fatal cobrir a sua genialidade. Passamos por ele todos os dias na esplanada do Sofia e nada fazemos: do que estamos à espera?

Fica aqui a minha palavra de ordem e incentivo: leiamos Arménio e divulguemos este escritor cuja escrita pouco ou nada reflecte a mundividência cabo-verdiana. Vieira é um escritor contemporâneo, mundano e actual que merece ser conhecido por todos os amantes das letras de expressão portuguesa.

Publico, em jeito de homenagem, um excerto do Eleito do Sol, a sua estreia na ficção em 1990, e Antipoema, um dos melhores textos que constituem as suas Mitografias, de 2006.

quarta-feira, 26 de março de 2008

My thoughts today

Trabalhar todos os dias e não ser remunerada todos os meses:
com que lata se pode exigir profissionais motivados e produtivos?

Afinal, compensa trabalhar em Cabo Verde?

segunda-feira, 24 de março de 2008

Minha querida Mãe: a mais linda de todas!

Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Tenho medo da vida, minha mãe.
Canta a doce cantiga que cantavas
Quando eu corria doido ao teu regaço
Com medo dos fantasmas do telhado.
Nina o meu sono cheio de inquietude
Batendo de levinho no meu braço
Que estou com muito medo, minha mãe.
Repousa a luz amiga dos teus olhos
Nos meus olhos sem luz e sem repouso
Dize à dor que me espera eternamente
Para ir embora. Expulsa a angústia imensa
Do meu ser que não quer e que não pode
Dá-me um beijo na fonte dolorida
Que ela arde de febre, minha mãe.
Aninha-me em teu colo como outrora
Dize-me bem baixo assim: — Filho, não temas
Dorme em sossego, que tua mãe não dorme.
Dorme. Os que de há muito te esperavam
Cansados já se foram para longe.
Perto de ti está tua mãezinha
Teu irmão, que o estudo adormeceu
Tuas irmãs pisando de levinho
Para não despertar o sono teu.
Dorme, meu filho, dorme no meu peito
Sonha a felicidade. Velo eu
Minha mãe, minha mãe, eu tenho medo
Me apavora a renúncia. Dize que eu fique
Afugenta este espaço que me prende
Afugenta o infinito que me chama
Que eu estou com muito medo, minha mãe.

Vinicius de Moraes, Poesia completa e prosa, Editora Nova Aguilar - Rio de Janeiro, 1998

quinta-feira, 20 de março de 2008

Há músicas que simplesmente não nos saem da cabeça

Always and forever
We'll be free
Always and forever
Be with me

We'll have love aplenty
We'll have joys outnumbered
We'll share perfect moments
You and me

Always and forever
You will see
Always and foreverJ
ust be with me

We'll have love aplenty
We'll have joys outnumbered
We'll share perfect moments
You and me
You and me
You and me

Lullaby, Lamb

quarta-feira, 19 de março de 2008

Também de meu amor precisas
para ser feliz,
desse amor de impurezas,
errado e torto,
devasso e ardente,
que te faz sofrer.

Jorge Amado, Dona Flor e os Seus Dois Maridos

Sá-Carneiro, my master

A Queda

E eu que sou o rei de toda esta incoerência,
Eu próprio turbilhão, anseio por fixá-la
E giro até partir... Mas tudo me resvala
Em bruma e sonolência.

Se acaso em minhas mãos fica um pedaço d' ouro,
Volve-se logo falso... ao longe o arremesso...
Eu morro de desdém em frente dum tesouro,
Morro à míngua, de excesso.

Alteio-me na cor à força de quebranto,
Estendo os braços d' alma - e nem um espasmo venço!...
Peneiro-me na sombra - em nada me condenso...
Agonias de luz eu vibro ainda entanto.

Não me pude vencer, mas posso-me esmagar,
- Vencer às vezes é o mesmo que tombar -
Eu como inda sou luz, num grande retrocesso,
Em raivas ideais, ascendo até ao fim:
Olho do alto o gelo, ao gelo me arremesso...
................................................................................................

Tombei...
E fico só esmagado sobre mim!...

Mário de Sá-Carneiro
Paris 1913 - Maio 8

terça-feira, 18 de março de 2008

My books, my life

“Do que é que te lembras? O que é que guardaste para ti como recordação marcante do teu passado, que faz de ti quem tu és hoje? Quem são os outros? Pessoas Personalidades? Acontecimentos? Artistas? Poesia? Um beijo? Há beijos que não se esquecem.”

Ontem acabei de ler, extasiada, o último romance de Cláudia Galhós (Lisboa, 1972) que encerra a sua Trilogia Rock, O Tempo das Cervejas. É difícil encontrar e ordenar palavras que consigam exprimir o que senti durante a leitura das 430 páginas e mais complexo ainda seria tentar descrever o último fôlego, ontem à noite. As experiências de vida de Amália, Teresa, Fabien, Julián, Anita, Jonsy Waist e Carlos Ruiz, tão ordinárias quão extraordinárias, existem sob a voz de Amália Rodrigues, os acordes da rouquidão desesperada de Kurt Cobain, o saudosismo de Zeca Afonso, a sonoridade cavalheiresca de Paolo Conte, The Doors, Tindersticks… A forma como oscilam entre o consciente e o inconsciente, o real e o virtual, o que é e o que poderia ter sido, a consciência (ou a falta dela) da lacuna entre o ideal artístico e as possibilidades e meios para o atingir, levaram-me a girar a lente de enfoque e apontá-la directamente para o meu umbigo. São vidas que se cruzam de maneira cândida e quase predestinada, são cidades que se visitam (ou às quais se regressam) numa espécie de voltinha pela nossa mais íntima memory lane. Lisboa, Paris, Lecce, Viana do Castelo. São experiências e recordações que se misturam com as nossas, devolvendo-nos uma realidade híbrida, matizada e que não conseguimos apurar bem se é, ou foi, a nossa. Será a vida transposta para a ficção ou talvez a ficção que complementa a vida.

Um miminho para todos aqueles que, como eu, respiram intensamente o ambiente dos festivais de verão portugueses:

“Portugal no Verão é um arraial de liberdade sonhada. Para despir o corpo, celebrar o sol, a música, o sexo, as drogas…
E ainda hoje o povo entoa, num coro abafado pelo pó, um verso de Zeca Afonso. Eterno. Actual. Só a causa política é já uma miragem.

Fizemos uma caseira revolução hippie, na crença do “paz e amor”, a vislumbrar esse mundo de “sexo, drogas & rock ‘n roll” por terras do Alto Minho. Lá para o norte, para os lados de Caminha, Barcelos, e Viana do Castelo.

Desde há alguns anos, um grupo de amigos marcava encontro no Festival Vilar de Mouros. É o mais antigo do país. Lá em cima, em terras de fortes raízes tradicionais e convicções religiosas. Os dias ali são mais frios no Inverno.
Por essa altura, a aldeia transforma-se para acolher a romaria dos festivaleiros.

A cabeça lançada ao céu. Jogada para trás na impertinência juvenil trocista.
A sedução pueril.
Os campos verdejantes.
Os cabelos. Em tranças, presos em rabo-de-cavalo, soltos ao vento ou naufragados pelo aconchego de um lenço florido.
As sandálias. Enfiadas nos dedos dos pés.
As unhas pintadas de vermelho.
E uma pulseira de prata no tornozelo.
O movimento pisava a superfície da estrada de areia. O pó.
Começava a levantar uma nuvem.
Os rumores.
Os olhares percorriam o horizonte e esbarravam uns nos outros. Tropeçavam encantados.
Riam alto.
Romarias…”

Trilogia Rock, de Claúdia Galhós: Sensualistas (2001), Conto de Verão (2002) e O Tempo das Cerejas (2007), Lisboa: Oficina do Livro

http://tempocerejas.blogspot.com

Singela homenagem à Póvoa de Varzim

De manhã que medo que me achasses feia
Acordei tremendo deitada na areia
Mas logo os teus olhos disseram que não
E o sol penetrou no meu coração.

Vi depois numa rocha uma cruz
E o teu barco negro dançava na luz
Vi o teu braço acenando entre as velas já soltas
Dizem as velhas da praia que não voltas…

São Loucas! São loucas.

Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.

No vento que lança a areia nos vidros
Na água que canta, no fogo mortiço
No calor do leito, nos bancos vazios
Dentro do meu peito estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo
Eu sei, meu amor, que nem chegaste a partir
Pois tudo em meu redor me diz que estás sempre comigo.

Barco Negro, Amália Rodrigues

segunda-feira, 17 de março de 2008

My thoughts today

Violência verbal, psicológica e física:
since when did we stop loving ourselves and others?

sábado, 15 de março de 2008


Em qualquer tempo em qualquer lugar

neste planeta ou do sistema solar

voltaria a levar-te ao altar.


por ti em cada reencarnação

esperaria ó meu coração

como quem espera a libertação.


de mãos dadas em cada regeneração

minha e tua seria essa paixão

até atingirmos juntos a perfeição.


em qualquer tempo em qualquer lugar

por tanto tanto te amar

voltaria a levar-te ao altar.


Oswaldo Osório, A Sexagésima Sétima Curvatura

sexta-feira, 14 de março de 2008

My Books, my Life

"Há duas maneiras de receber a vida. Uns recebem-na mecânica e automaticamente, como aqueles que aceitam uma moeda, não investigam se ela é falsa, e assim a vão passando de mão em mão. Outros recebem-na num acto de vontade e de raciocínio, pensamento, reflectidamente, aplicando às noções morais a consciência do químico que não recebe o produto das fábricas sem o analisar e lhe reconhecer o valor.
Sê destes últimos. Não adoptes sem exame as noções comuns; pelo contrário: pensa de novo o que foi pensado ou impensado antes de ti; mede as noções de família, de pátria, de coragem, com uma curiosidade séria de observador e com um cuidado beneditino de analista; disseca tudo, comete todos os sacrilégios, sê o iconoclasta combatido, contanto que ponhas de acordo a tua vida com a tua razão. (...) De criaturas tornemo-nos criadores." (Raul Proença, in António Reis, Raul Proença, Estudo e Antologia, Lisboa: Alfa, 1989)

Escapadinha ao Maio



Num destes fins-de-semana desloquei-me à ilha do Maio para uma escapadinha. Há momentos em que sentimos uma ânsia de abrandar, reequacionar ou simplesmente desaparecer da nossa rotina. O Maio é a ilha mais próxima de Santiago, os barcos saem da capital todos os sábados, segundas e quintas-feiras. Em duas horas e meia, e por 2.400$00 (bilhete de ida e volta), facilmente fazemos a travessia que nos leva a uma realidade distinta da nossa. A modesta embarcação, em abono da verdade, não comporta grandes luxos: uma sala comum com vários cadeirões já desbotados, bancos de madeira nas laterais e uma parafernália de encomendas agrupadas em caixotes, sacos de arroz, batatas, frigoríficos, um incontável número de cestos a abarrotar. Muitas crianças, alguns turistas, amigos e conhecidos discutindo futebol, um ou outro solitário. Deixámos o cais da Praia às 7h da manhã e chegámos ao Maio exactamente às 9h30. A aproximação à ilha deixou-me boquiaberta: um areal de palmeiras, árvores que se estendiam pela costa, o mar lentamente ficando mais límpido, a língua do cais que nos puxava. Mal pisei o pé na terra, uma simpática rapariga estendeu-me um cartão de uma das poucas pensões locais e alguém me chamou alto pelo nome. Gente da Praia, pensei. E era mesmo. Quando pensamos que estamos a salvo do nosso mundo, ele acaba por nos encontrar. Apanhei o primeiro choque quando me cobraram 200$00 de hiace por um percurso de menos de dois minutos do cais à vila. Xuxadera? Não, não era. Na Praia paga-se menos porque há mais carros disponíveis, vaticinou o condutor que, nesse momento, fez-me questionar se teria a idade mínima para ter a carta de condução. Meus amigos, fica aqui o conselho: podem perfeitamente atravessar o areal, demoram dez minutos, a vista é bem mais agradável e poupam 200$00.
À entrada da Vila do Maio, e pela primeira vez, tive noção do quão distante estava da vertigem da Praia. Naquela marginal virada para o mar, com apenas dois cafés abertos, pude antever como ali se vive noutro ritmo, mais lento, mais morabeza talvez. As ruas são estreitas, em paralelo, e fazem lembrar as pequenas cidades do norte de Portugal ou aquilo que imagino que sejam as mais antigas do Brasil. Ruas por vezes sinuosas, onde a privacidade é quase escancarada, alguém que espreita por uma cortina, um senhor que dorme a sesta, uma mulher que frita moreia à porta, meninas a saltar à macaca, uma senhora a vender fruta, amigos e compadres à porta do “Café Bons Amigos”. Uma casa grande, antiga, verde de portadas amarelas chamou-me a atenção: era o bar e restaurante “Ana Rita”. Fui recebida pela própria e pedi uma catchupa. Era de peixe e honestamente não era das melhores que já comi (a da Rosa, do Tarrafal, continua a ocupar o pódio), embora a vista daquela varanda tenha compensado, em grande medida, o prato menos saboroso.
O mar (da vila) do Maio é bem mais bravo do que alguma vez vi em Santiago. Atraem-me as ondas volumosas, imponentes, rainhas que rebentam com estrondo e esplendor. Sinto um misto muito curioso de atracção e medo e normalmente atiro-me quase irracionalmente. No Maio “bati a bolinha baixa”, isto é, não ousei entregar-me ao rodopio violento daquelas ondas que não davam descanso: cada vez maiores, mais barulhentas, mais ferozes. Inevitavelmente tive de optar pelo mergulho-penso-rápido. Ao fim da tarde, muitos se entregam àquele areal extenso, jogam bola, fazem exercícios, caminham lado a lado com o mar, contemplam o magnífico pôr-do-sol. Em frente, quando o dia está mais claro, Santiago ergue-se quase de forma monstruosa. São os contornos da ilha mais desejada e quase aureolada pelos habitantes do Maio.
Ao regressar na Segunda-feira de manhã (cuidado com as mudanças súbitas de horários da travessia. Inexplicavelmente anteciparam, nesse dia, das 16h para as 11h!), enquanto o barco se afastava do cais, vi a vila a expandir-se, subúrbios a pulular, prédios a crescer, a voz de alguém “Nu ta fazi uns apartamentos li”. Senti um ligeiro aperto e naquele momento soube que nunca mais vou voltar ao mesmo Maio.

Literatura & Sociedade


Baltasar Lopes: um qualquer gene intrínseco leva-nos de imediato a associá-lo ao seu “Chiquinho”. Trata-se da obra mais lida da literatura das ilhas e portanto a mais próxima de todos. Logo nas primeiras páginas, o narrador faz saber que Francisco, a personagem central, não deveria “lombar na enxada”, “Chiquinho tinha dois palmos de testa”, deveria pois seguir a vida estudantil. Foi isso que fez e o seu empenho levou-o a tornar-se professor primário. Baltasar Lopes começou a escrever o que muitos apelidam de primeiro romance cabo-verdiano no início da década de trinta do século passado.
Mais de setenta anos depois, Cabo Verde continua a ser um país onde muitas crianças lombam na enxada. Vemo-las espalhadas nos meios rurais, nas cidades e mais ainda na cidade capital. Os que lombam na enxada são aqueles a quem é imposta uma vivência ferozmente adulta quando ainda têm idade de brincar e sonhar. Lombam na enxada as crianças sós, as que mendigam um pão. Lombam na enxada os piratinhas que fazem do furto o seu modus operandi, ou os muitos que vagueiam, aparentemente sem norte, em grupos pela escuridão dos becos da cidade. Lombam na enxada os que fazem do areal do Gamboa a sua cama e das estrelas a sua manta.
Não aprendemos nada no último século? Não sentimos os efeitos devastadores dum sistema educativo deficitário, que continua a promover a exclusão por não apoiar directamente a inclusão de crianças marginais? Os marginais não são os criminosos mas sim os que vivem à margem da sociedade. Na Cidade da Praia a marginalidade coabita alegremente com o quotidiano ordeiro e socialmente correcto da maioria. As políticas educativas têm-se revelado alienadas e insuficientes. Sucedem-se os governos, multiplicam-se as medidas mas de facto pouco ou nada muda. Todos preferem fechar os olhos. O poeta português Ricardo Reis, heterónimo do grande Pessoa, havia já aconselhado: “Põe quanto és no mínimo que fazes.” O Ministério da Educação e as autoridades competentes não têm sido, ou não o são, pois não depositam nada do que deveriam ser no mínimo que fazem.
É desolador acompanhar o crescimento duma criança de rua. Ainda no outro dia era tão pequeno, ouve-se dizer. Hoje já não é criança, é um piratinha. Um estado intermédio, nebuloso entre a infância e a idade adulta, entre o Bem e o Mal.

“A educação é o nosso passaporte para o futuro, pois o amanhã pertence aos que se preparam para ele hoje.” (Malcom X)

Sexo & Relationships

É impressão minha ou na Cidade da Praia todos levam com traição e caçu-bodi? Parece vir com o pacote completo das belíssimas praias de águas cálidas e transparentes que todos teimam em fixar como o cartão de visita do país. Meus caros, vamos chamar as coisas pelos nomes próprios e parar de embelezar ou atenuar o que de mais grave se passeia pelas ruas. Por onde hei-de começar? Qual será a transgressão mais grave? A que nos rouba a carteira ou a dignidade?
Vivemos em microcosmos, em bairros distintos, cada um com as suas vicissitudes. Por exemplo, andar a pé, depois das 19 horas, na Achada de Santo António é sinónimo de caçu-bodi… não se efectivando torna-se sinónimo de uma sorte extraordinária. Cada bairro esconde uma casa, cada casa uma família, um pai que se desdobra em dois para viver em estado dúbio. Não é preciso ser pai, nem sequer casado. Basta ter alguém. Quantos homens conhecemos que dão as suas escapadinhas com um sorriso? Por quantos nos calamos, numa cumplicidade que nos corrói, a nós mulheres, por no fundo suspeitarmos que alguém também nos esconde uma verdade cruel? E cobarde. O princípio é o mesmo: vamos sossegados, na rua, por vezes até distraídos e a apreciar a vista quando, de repente, toma lá que já levaste! Chegam sem darmos por eles porque, quando passam por nós, abrem um sorriso e fazem de conta que somos mais um anónimo na sua vida. O mais cruel é quando se mascaram de amigos. Então, surpreendem-nos por trás, estrangulam-nos o pescoço com o braço, esmagam o nosso coração e tiram-nos tudo o que temos. Ou julgávamos ter. Assim, num segundo. Se tivermos mesmo muito azar ainda levamos com uma paulada na cara, violência gratuita e profundamente desumana que nos faz cair por terra e ver, sem fôlego, a vida dos outros que continua num passeio de carro pela Quebra-Canela.
Deixou-te vazia, um sentimento de impotência enorme, raiva, vontade de esmurrar uma ou duras caras insistentemente até se transformarem numa amálgama de vísceras sem vergonha. Mas para que vão querer aquela carteira velhinha que não vale nada? – perguntamos incrédulas. Para que vão querer um homem cujo primeiro passo é já dissimulado? Não sabemos explicar como. Levamos sempre a mão ao peito e deixamos soltar-se um indeciso “Oh, não sei…” misturado com um sorrisinho já encantado e cremos, queremos, puerilmente imaginamos que a partir daquele momento tudo será diferente. E a roda volta a girar: vamos sossegados, na rua…

Sexo, Alcool (Drogas e Rock & Roll?)

Todos nos confessamos a uma mesa de café, a uma esplanada. Outras vezes a um bar de uma discoteca. Todos bebemos quem queremos, todos pedimos o que consumimos. Seja uma Cola Trindade, nacional, mais doce e por isso mas sabi, seja uma Pirate loira importada, a carícia a mel de uma Malta, a fogosidade de um grogue. Há homens que são como a Coca-Cola ®, homens simples e sóbrios, homens que estiveram sempre lá no alto, de pé, vendo outros chegarem, tentarem brilhar e logo desaparecerem. É a fugacidade da ilusão.
Tenho reparado nas bebidas que acompanham as mesas dos homens da Praia. A cerveja ocupa uma posição de destaque no ranking das bebidas alcoólicas mais consumidas. Super Bock, Heineken e Strela. Quem bebe exclusivamente a última não esconde um orgulho no que é nacional, no Batuko, ancas que saracoteam delineadas por um sensual pano di tera, cabelos apanhados em lenços coloridos, saias de algodão que dançam ao vento, olhos escuros de azeviche, sorriso terno e luminoso. A cerveja estrangeira já é para os homens que se consideram da novíssima geração, a geração que louva a miscigenação, a partilha de experiências e culturas. Ocupam os bares da moda, marcam presença nas vernissage e mandam bocas nos blogs. Muitos deles mantêm relacionamentos com mulheres estrangeiras, viajam bastante on e offline, acompanham as notícias do mundo, traçam planos ambiciosos de desenvolvimento nacional. São homens que oscilam nas suas preferências, pois gostam de alternar entre o produto nacional e o estrangeiro. Não esqueçamos que esta reflexão abarca todos os homens que fazem desta a sua cidade e não apenas os cabo-verdianos. E o que dizer dos que ostentam uma Pirate, cerveja loira importada, como se fosse um troféu? Mania da diferença? Mais cedo ou mais tarde todos se deixam levar pelo encanto duma boa e reconfortante Strela-sabor-Kebra-Canela. Está-lhes no sangue, o resto é apenas pirotecnia.
Muitos não abdicam dos copinhos pequenos onde repousa o brilho do grogue. Beber para esquecer ou beber para viver? Há mulheres fogosas, voluptuosas, mulheres-furacão. Há mulheres malagueta, mulheres enguiçadas. Há homens que procuram um meio para lidar com as mulheres no fundo dum copo.
Poucos homens bebem sumos ou refrigerantes. Isso é para as meninas. Masculinidade assombrada? Necessidade de mostrar a sua virilidade? Quando um homem bebe Malta é sinal que está doente. Nesse momento o que mais quer é o balanço de uma rede, um abraço meigo e protector, um cafuné no cabelo e um milhão de beijos.
Quase todos os homens acreditam piamente que não necessitam de qualquer estimulante. Poucos bebem café e dos que bebem são raros os que não ficam satisfeitos. Não conheço um único homem que viva na Cidade da Praia e que, ao chegar (se de facto chega!) um funcionário do Café Sofia, do Dego, do Flor-de-Lis, do 5al da Música, do Cometa, do Só Sabi, do Irish, do Paulino, do Alkimist, peça um café curto ou forte, que não se contente com menos do que um café tirado com brio, espuma a escorrer e a pingar, derradeira, no líquido quente e escuro. O que por aí se esvai nessas máquinas é a vulgaridade da aguinha de lavar chávenas e parece agradar à grande maioria. Escassos ou inexistentes critérios de selecção? O que vier à chávena bebe-se!