sexta-feira, 29 de agosto de 2008

Take Me Out!!!!


So, if you're lonely
You know I'm here
Waiting for you
I'm just a cross-hair;
I'm just a shot away from you
And if you leave here,
You leave me broken
Shattered I lie
I'm just a cross-hair;
I'm just a shot, then we can die
oooh!
I know I won't be leaving here
With you
I say, don't you know?
You say you don't know
I say: take me out
I stay, you don't show
Don't move; time is slow
I say: take me out
I say, you don't know
You say you don't go
I say: take me out
I know I won't be leaving here (with you)
I know I won't be leaving here
I know I won't be leaving here (with you)
I know I won't be leaving here
With you
I say, don't you know?
You say you don't know
I say: take me out
If I move, this could die
Eyes move; this could die
C'mon --Take me out
I know I won't be leaving here (with you)
I know I won't be leaving here
I know I won't be leaving here (with you)
I know I won't be leaving here
With you
Franz Ferdinand

quarta-feira, 27 de agosto de 2008

“A Grande Arte”, de Rubem Fonseca

Há mais de um ano e meio, Minhokinha deliciava-se numa tertúlia com Francisco José Viegas na Casa das Artes, em Vila Nova de Famalicão. Para além de jornalista e, mais recentemente, director da Casa Pessoa, Viegas é um notável ficcionista e não esconde que o género policial é o seu favorito. Referiu-se a José Cardoso Pires como um dos seus grandes modelos (“A Balada da Praia dos Cães”, “O Delfim”) e quando questionado sobre qual o melhor romance que lera não demorou dois segundos a responder: “A Grande Arte”, de Rubem Fonseca, sem dúvida o romance mais completo e complexo que lhe passara pelas mãos.

Minhokinha encostou-se para trás na cadeira e pensou que se Francisco José Viegas, um escritor cujas tramas ficcionais têm recebido os mais rasgados elogios nos últimos anos, não hesitara em nomear o romance do autor brasileiro como superior é porque este deveria valer mesmo a pena! Abandonou o pequeno bar da Casa das Artes ansiosa por ler Viegas, cujos romances eram ainda para si desconhecidos, e Fonseca. Infrutíferas se revelaram as várias digressões a livrarias e bibliotecas, a maior arte d’ “A Grande Arte” parecia ser a sua raridade. Minhokinha mudou-se entretanto para Cabo Verde onde, logo na primeira Feira do Livro em Fevereiro de 2007, adquiriu “Longe de Manaus”, um policial do autor português que durante umas semanas a manteve presa ao enredo dividido entre o Rio de Janeiro, Manaus, Luanda e até uma breve passagem pela ilha de S. Vicente. Ainda assim, não desistia de encontrar “A Grande Arte”, tendo revirado todas as bibliotecas da Cidade da Praia em busca daquilo que entretanto já se transformara numa preciosidade. E quando já nada fazia prever, quando já nem tinha esperança, Minhokinha descobre um exemplar na nova livraria Nho Eugénio, na Achada de Santo António. Milagre? Recompensa pela paciência e perseverança demonstrada? Ou pure damn luck?
A contracapa avisa: “Mestre absoluto no controlo do ritmo narrativo, Rubem Fonseca gera expectativas e surpresas, pratica a arte de provocar tensões e distensões na narrativa, de a conduzir sem pressa ao clímax desejado.” Leitura-relâmpago viciante e contagiante.
Um homem que rasga um P na face das suas vítimas, um advogado que não se contenta com a verdade aparente, um poderoso louco ou louco poderoso, os segredos do Percor, uma cassete de vídeo perdida e comprometedora, três mulheres que esgotam um homem, prostitutas atrevidas, homossexuais declarados, o boteco do Rio de Janeiro, o amigo chui, o anão Nariz de Ferro, o boliviano Fuentes que só vê dum olho mas mata certeiro como se tivesse dois, Ada – Bebel – Lilibeth, a sacanagem do malandro carioca, a bela arte do manejo da faca.

“Muitos anos antes de Cristo havia na Grécia um poeta, Arquíloco, que dizia: ‘Tenho uma grande arte: eu firo duramente aqueles que me ferem’.”


A Grande Arte, Rubem Fonseca, 1ª ed. 1983 (Campo das Letras: Porto, 2007)

segunda-feira, 25 de agosto de 2008

The Porto Madeira 2008 Experience



"Não existe ensino que se compare ao exemplo". (Baden Powell)

Envergonhe-se quem deixou passar Porto Madeira 2008!


Envergonhe-se quem não se abriu a esta inesquecível experiência humana e cultural!


O mote era o Encontro Transatlântico de Artes Plásticas que reuniu criadores oriundos de França, Senegal, Itália, Côte d'Ivoir, Cabo Verde e Madagáscar mas a realidade ali vivida transcendeu a mera esfera artística.


A olho nu, este encontro visou colorir as paredes cinzentas da pequena localidade: as casas ganharam vida, a escola primária lá no cimo do monte, o tanque de água pintado pelas crianças, a rua de Nha Victória, a casa/restaurante da Matchika, um pequeno conjunto de habitações ao fundo do vale que representam cada uma das ilhas do arquipélago, a Ribera d'Amor, até as pequenas e quadradas pedras das leiras se transformaram num gigante Lego que rasgou o verde viçoso das chuvas. A olho nu é este o projecto mas quem, de facto, se deu ao trabalho de subir a montanha íngreme que esconde este paraíso sentiu (sim, sentiu!) que toda a experiência ali proporcionada é bem mais enriquecedora dos pontos de vista humano e social do que propriamente artístico. Não que devamos desvalorizar o papel da arte neste tipo de iniciativas, pelo contrário. A arte de carácter social e reformador é, a meu ver, aquela que mais sentido faz no "egomundo" de hoje. Decorar uma árvore com dezenas de garrafas vazias de coca-cola, sprite e fanta pode não ser a vanguarda da art-déco, mas ao contemplar o efeito final, conseguido com uma acção tão simples e criativa, faz-nos sentir ter a força suficiente para mudar o nosso pequeno cosmos, depois o nosso país e, em última escala, o planeta.

Algumas imagens que ficaram na retina... e se fixaram:


- Misá, a graciosa anfitriã cujo sorriso triste de Mãe-Nação é a porta de entrada colorida deste Porto Madeira 2008.


- O "Cine Preto Fixe" improvisado que juntou crianças e jovens maravilhados em frente ao "médio ecrã".


- A generosidade e a prontidão de Matchika, a senhora cuja casa se transformou em restaurante sempre com um prato de comida para dar a quem chegasse. (Alguns estranharam o facto do seu dinheiro, ali, de nada valer.)


- Meninos pendurados no baloiço improvisado rindo alto.


- A casa do Zé Tomáz, artista cabo-verdiano, transformada em recepção pronta a receber. As bafas saborosas da Lenira.


- A boa disposição e energia de Mito, artista cabo-verdiano, a hospitalidade e os seus inesperados dotes culinários.


- A aura de Tchaka, artista cabo-verdiano, misterioso no seu silêncio contemplativo e pronto a descer o monte sem ver um palmo à frente para nos guiar a um porto seguro.


- Julie, Lamberto, Alex, Carlitos, Pascal, Omar, Anne...todos! Um grande abraço pelo mundo que me deram a conhecer e pela dose de optimismo e garra com que desci a montanha.



PS - À noite, em redor dos cinquenta mil mosquitos que esvoaçavam uma lâmpada, Lamberto:


"E uma música internacional que pudéssemos cantar em conjunto? Só se fosse...

We are the world, we are the children,

we are the ones who make a brighter day, so let's start giving..."


That's the spirit! :)

domingo, 10 de agosto de 2008

Maria Ramantxada IX

Quando Aristё ouviu as ideias debatidas entre o professor Santos-Lima e o poeta Arménio, os olhos castanhos brilharam como lantejoulas em mini-saia de crioula, o sorriso abriu rasgado e sonhador, os irrequietos caracóis do seu cabelo espetaram-se (ainda mais) no ar e gritou, qual Salgueiro Maia frente ao Carmo: MANIFESTAÇÃO! REVOLUÇÃO!
Lutar por um ideal (quanto mais utópico melhor) e levar Cabo Verde ao pódio dos países mas desenvolvidos (outra grande utopia) eram o sal da vida desta jovem para quem todos os dias eram potenciais conquistas. Vivia, respirava, sonhava e aclamava o mito: Cabral! A força de Cabral, o pensamento de Cabral, a luta de Cabral e, consequentemente, as campanhas de cidadania e afins em nome de Cabral. Magra, alta, cor de café com leite, vestia sempre roupas largas, de inspiração rastafari, que não salientavam a sua figura atlética mas sim as suas convicções mais profundas: gorro de lã à semelhança do que Amílcar Cabral usava, t-shirts largas com mensagens ecológicas (Salvem as Nossas Tartarugas Já!), políticas (Fuck Dictatorship!) ou simplesmente motivadoras (A Melhor Forma de Prever o Futuro é Criá-lo!), calças de ganga surradas e havaianas gastas pelas muitas caminhadas já efectuadas pelo interior da ilha de Santiago. Aristё não era dada a namoros, embora já lhe tivessem sido atribuídos muitos. A culpa era certamente dos seus intensos olhos castanhos, ligeiramente caídos como os do seu pai, doces, de mel, tão inocentes e sonhadores como os de uma criança de oito anos. Era com esse olhar que arrebatava até os corações mais duros, com o seu optimismo teimoso conquistava a simpatia de todos, com a sua inteligência e dinamismo a admiração geral da cidade. Era preciso organizar uma manif de um dia para o outro? Aristё! Dar a cara por alguma causa humanitária? Aristё! Reunir voluntários para limpar a imundície das praias de mar? Aristё! Fazia tudo o que pudesse, e o que não pudesse arranjava maneira de poder, pelo povo e sobretudo contra o sistema! O que era o sistema? Bem… isso era uma questão que fazia a jovem cabo-verdiana subir ao palanque por horas a fio fazendo com que até os seus amigos, por vezes, bocejassem. O sistema, nas palavras da própria Aristё, é tudo à nossa volta, toda a podridão do comodismo institucionalizado, a atitude generalizada de recusa de eficiência, o meter ao bolso dos governantes, o desleixo para com os que realmente necessitam de ajuda, os Prado shinning new a 140Km/h dos que estão no poder, o estado caótico a que chegou a gestão da cultura cabo-verdiana… et caetera, et caetera.
Quando a jovem recebeu o telefonema de Santos-Lima ficou a saber que este pretendia desmascarar as informações erróneas divulgadas por Vivian Espírito-Santo de Totta & Açores e que planeava um estrondoso movimento de cidadania em defesa da honra e virtude imaculadas da amiga. (MANIFESTAÇÃO! REVOLUÇÃO!) O professor encontrava-se mesmo em processo de negociações com a televisão nacional a fim de obter um prime time (antes ou depois da novela, claro, nem ousaria propor que a tirassem da antena por uma noite que fosse) onde pudesse reunir as pessoas que realmente conheceram a senhora dona Maria, mulher ímpar e marcante mas neste momento objecto de calúnias infundamentadas. Para isso necessitava do savoir-faire de Aristё em matéria de organização quase-instantânea de tal evento monumental. Recordou, com uma lágrima, o vigor e o sorriso de Maria e Aristё acedeu num segundo. Também ela se tinha habituado às ancas de Maria Ramantxada a saracotear no Plateau, ao seu habitual “Bons dias, passou bem?” e estava, sobretudo, horrorizada com tal crime brutal. Se era para apanhar o culpado e prever futuros homicídios que contassem com ela. Hasta la Vitória. Siempre!
Num minuto e meio Aristё abriu o seu Asus cinzento e preto numa dessas pracinhas onde se surfa na Internet gratuitamente e enviou um e-mail colectivo a mais de metade da Cidade da Praia, vulgo gente-mais-que-influente, a convocar para a grandiosa manifestação em defesa do bom nome da Senhora Dona Maria. E também em protesto declarado contra o jornalismo vergonhoso praticado em Cabo Verde. E já agora, pensava Aristё com os seus caracóis, também se aproveitava para mandar umas bocas ao sistema. Orgulhava-se imenso dos seus conhecimentos de informática e web. Gostava de sair à noite com os amigos e, de vez em quando, deixar levar-se por um bom krioulo, mas o que a punha em verdadeiro êxtase, quase tanto como repetir in viva voce o testemunho de Cabral word-by-word, era perder-se nas inúmeras funcionalidades do Excell e do Outlook, do iGoogle e do Blogger, do Windows Altavista e do Linux, enfim, de todos os zeros e uns que compõem o sistema (este bem mais benéfico para todos) informático em rede.
Profissional e irresistível como sempre, as suas palavras foram cegamente cumpridas por todos aqueles que receberam o seu mail. E assim, no dia seguinte, às 18h30 em ponto (feito notável na História de Cabo Verde), uma vasta multidão surgiu da Rua dos Prazeres, com Santos-Lima na dianteira, atravessou a esplanada do café central (o jogo de xadrez foi imediatamente cancelado) e instalou-se, à espera de outros tantos, no jardim da praça em frente à Reitoria.
Arménio, impávido, assistiu a tudo da porta duma tasca muito ranhosa ali do lado, o PéXungosodiPomba. Tou fodido, soltou-se baixinho da sua boca. Despejou um grogue garganta-abaixo, acendeu um Gigante e, de camisa aberta e transpirada até ao umbigo, passos lentos a marcar 10 horas e dez minutos, foi placidamente juntar-se à multidão.

sábado, 9 de agosto de 2008

The Man and the Guitar

Tive o prazer de assistir ao concerto dos meus queridos amigos “Nameless Project”, quinta-feira à noite, 7 de Agosto, no Auditório Nacional da Cidade da Praia. O Sori, o Helker, o Tico, o Ruben e o Dani são vistos pela comunidade como os metaleiros, pois ostentam as suas crenças bem à vista nas t-shirts pretas: All that is holly is Megadeth é só um exemplo. O concerto surpreendeu-me por não ter sido, de todo, um espectáculo de heavy metal agressivo, como muitos de nós ignorantes temos a mania de rotular, mas antes uma fruição de algumas tendências algo distintas que, de uma forma muito mágica, se complementaram na perfeição. Quando as largas cortinas vermelhas se abriram ao meio, ouviu-se um boa noite tímido do Sori, estrategicamente colocado no meio do palco apenas ocupado pelos vários instrumentos a serem utilizados e duas singelas cadeiras, educadamente pediu desculpa aos presentes pelo atraso e apresentou as linhas principais do espectáculo. Os primeiros dez minutos foram dedicados à guitarra acústica, com as vozes de Ruben e Cady, e a um momento insólito de partilha dum original do Sori. As cortinas fecharam. Quando voltaram a abrir, imponentes e pesadas, os quatro "Nameless Project" entraram e de guitarras, baixo e bateria bem afinados ofereceram ao público uma performance ímpar. Tocaram covers mas nem por isso perderam a originalidade e a rebeldia. Quem tem um lead man com um sorriso daqueles tem tudo!
Entretanto dei comigo a pensar: por que será que um qualquer homem empunhando uma guitarra é, automaticamente, um homem a verter sensualidade por todos os poros? Guitarra clássica vá lá, mas guitarra eléctrica é certeiro! Será que a guitarra, por si só, torna o homem mais sexy? Seria ele desprovido de tal atributo se tocasse, por exemplo, piano? Ao observar os metalheads em êxtase na sua performance concluí que a guitarra pode tornar o homem sensual mas a maneira como este a maneja pode torná-lo irresistível. É a perna direita que se apoia numa coluna, a bacia bamboleando para a frente e para trás, é toda uma pose do oh yeah que se constrói em torno do símbolo musical. E das fans. E dos gritos de ovação.
Acabámos a cantar “hey teacher leave the kids alone!”, pela voz do Carlinhos, outro convidado que para mim foi a maior descoberta da noite. Polegares, indicadores e mindinhos no ar. Guitarradas melodiosas a arranhar as colunas! The Metal is, indeed, Alive… e recomenda-se!





sexta-feira, 8 de agosto de 2008

Estou Além


Não consigo dominar
Este estado de ansiedade
A pressa de chegar
P'ra não chegar tarde
Não sei de que é que eu fujo
Será desta solidão
Mas porque é que eu recuso
Quem quer dar-me a mão

Vou continuar a procurar a quem eu me quero dar
Porque até aqui eu só

Quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi
Porque eu só quero quem
Quem não conheci
Porque eu só quero quem
Quem eu nunca vi

Esta insatisfação
Não consigo compreender
Sempre esta sensação
Que estou a perder
Tenho pressa de sair
Quero sentir ao chegar
Vontade de partir
P'ra outro lugar

Vou continuar a procurar o meu mundo, o meu lugar
Porque até aqui eu só

Estou bem
Aonde não estou
Porque eu só estou bem
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou
Porque eu só estou bem
Aonde eu não vou
Porque eu só estou bem
Aonde não estou

António Variações

segunda-feira, 4 de agosto de 2008

Maria Ramantxada VIII

Venho em missão de paz, venho em missão de paz, já se ouvia lá do fundo, da porta da escola grande, à chegada da esplanada central. Os jogadores de xadrez voltam a cabeça e acompanham a chegada do Professor, gesticulando no meio dos seus eternos papéis, tentando fechar a malinha de couro académico que se recusava a enclausurar outros tantos documentos, óculos impreterivelmente encavalitados, blusa branca bordada com pano di terra dos lados. Santos-Lima. Chega com um “Ai, eu hoje estou de todo!” e ignora os olhares curiosos que despontam em seu redor. Pousa os papéis numa mesa ocupada apenas pelo faz-nenhum habitual, ser invisível para a maior parte da comunidade, olha em volta e, não vendo quem procura, atira o seguinte míssil: Venho falar com o Arménio! Ninguém ousou responder, os senhores limitaram-se a trocar olhares com cara de quem vê as nuvens a prometerem tempestade. Mas estarão vocês destituídos do dom da audição?, insiste o professor. Onde está o Arménio? Já disse que venho em missão de paz!
Era uma história mais contada do que a di nhu Lobu ku xibinhu, mais repetida do que os contos basofos de engates a meninas de quinze anos, tão secular quanto o achamento das ilhas: a grandiosa desavença entre o poeta e o catedrático há mais de vinte anos que tinha resultado num desafio de espada numa alvorada no Monte Tchota. Só um poderia sobreviver e os dois juram que só não mataram o outro a sangue-frio porque tiveram o azar de se desequilibrarem com um forte terramoto que assolou Santiago nessa manhã. O motivo verdadeiro nunca se soube mas muito se especulou. Hoje cada um conta o mito à sua maneira, enaltecendo a sua própria figura, claro está, e sublinhando a fraqueza física e sobretudo moral do adversário.
- É este o dia em que finalmente vou ter o prazer mais do que adiado de te decapitar, ó professoreco? – ouviu-se um catarro com cheiro a Marlboro mesmo à entrada do café.
- Deixemo-nos desses argumentos dantescos e façamos o obséquio de partilhar a mesma mesa durante uns minutos. Acredito que o assunto que me traz aqui seja do teu interesse e estou num estado tal de revolta que já nem me importo com os microfones escondidos no jardim. Olha, já estou a ver ali um! É sobre a Maria. Urge quebrar este silêncio pelo amor que, irremediavelmente, sempre nos uniu àquela mulher.
Arménio deu mais duas passas impossíveis naquela ponta de cigarro já decadente, vociferou um “oh fofa traz-me um grogue” à empregada do café (não é curioso que se chamem em-pregadas às pessoas que passam o dia precisamente pregadas ao chão?), afastou uma cadeira com estrondo e sentou-se. Santos-Lima admitiu, antes de mais, estar em absoluto estado de choque com a desgraça que se abatera sobre Maria e logo naquele dia, dia de Pessoa, em que ela estava tão feliz! Tinha ânsias de descobrir o autor do crime, não entendia porquê, porquê, e direccionava toda a sua raiva à jor-na-lis-ta-zi-nha-sem-ei-ra-nem-bei-ra que se tinha corrompido ao veneno saboroso do sensacionalismo e, em busca de uma manchete (também o professor era crioulo e, encontrando-se em estado de nervos agudo, deixava soltar por vezes um brasileirismo), não tinha feito na-da-mais-na-da-me-nos do que manchar a reputação da nossa caríssima. E ele, Santos-Lima não poderia permitir tal abuso. Já bastava ter de se conformar com a ausência fatal da amiga querida, já bastava ter de viver…
Tiveram de interromper a conversa ali mesmo. Há situações que nem o mais feroz dos terramotos consegue parar e neste caso, nesta esplanada da Cidade da Praia, é a chegada diária da dona do café. Elisabete estaciona o robusto jeep vermelho na lateral da praça mesmo ao lado do jogo de xadrez… que já não vai a lado nenhum. Há quem aproveite até o pasmo geral para, num passe rápido de mestre, movimentar uma ou outra peça sem ninguém ver. Elisabete sabe que esse é o seu momento. Demora cinco a dez segundos a sair do carro, coloca os grandes óculos de sol Donna Karan no rosto, solta os cabelos longos ondulados, e eleva o pequeno controlo remoto do veículo acima do ombro esquerdo trancando-o e prevenindo-o contra os eventuais assaltos. Quando a máquina solta o pi e acende todas as luzes dos faróis, Elisabete sabe que só tem de percorrer os dez ou quinze metros por entre a esplanada que a vão levar à porta do café. Alta, magra, elegante, soberba de Itália, ninguém diria que já é avó. Abre um sorriso aos velhotes do xadrez, acena-lhes um bom dia que os faz sonhar com boas noites e vai sambando lenta no alto das suas sandálias Louis Vuitton enquanto carrega o saco de uma qualquer marca internacional, que agora não me ocorre qual, onde, por certo, depositará os seus pertences de inquestionável mulher de negócios variados. Vai lenta e soberba, em estilo de Princesa Diana a atravessar a multidão de fãs, e ocasionalmente até atira beijos às amigas ou conhecidos que vê sentados nas suas mesas. Gosta de manter a pose, aquele ar de deusa acidental que nada faz para tal e sorri, sorri muito em redor. Sabe que deixa os homens descontrolados e as mulheres com olhos em bico. Quando pressente um olhar mais atrevido solta uma gargalhada sonora e volta a mandar os fios de cabelo para trás dos ombros. Entra no café, a vida volta à normalidade para todos. E assim Arménio e Santos-Lima podem, finalmente, continuar a conversa.