sexta-feira, 25 de abril de 2008

A Muda: Chapter III

No dia seguinte acordei cedo. A bem dizer quase não dormi a pensar no sucedido. Mal deram as 9h da manhã, eu ainda em pijama, tocam-me à campainha. Abro a porta e sou imediatamente ofuscado por uma luz fortíssima, só tive tempo de ver um espanador no ar, nem percebi o que a rapariga que estava à minha frente me dizia. Só passados uns segundos compreendi: era a TVI a fazer a reportagem. Como é que estes jornalistas já sabem de tudo? E que raio de ideia é esta de me virem filmar no meu pijama de flanela, ainda por cima com algumas nódoas amareladas de leite e manteiga? Se eu conhecia os jovens em questão? Conhecia pois, desde que se mudaram para cá há uns quatro ou cinco anos. Não senhor, nunca me apercebi de discussões a não ser esta última que acabou em desgraça. Onde poderá estar o fugitivo? Eu sei lá bem, menina! Na minha casa é que não está de certeza e se calhar já abalou para Espanha. Muito obrigada muito obrigada, de nada sempre às ordens e fechei a porta. Quando me vesti e fui espreitar à entrada do prédio para ver a movimentação, deparo-me com a senhora dona Muda rodeada de jornalistas. Em êxtase, toda sorridente e de malinha na axila, discursava entre sons e gestos e relatava o que, de facto, aconteceu. A menina está-me a ouvir? Parece que ficou a olhar para ontem. Pois, está em choque… pudera, também eu fiquei ao deparar-me com aquele circo. Mas quer que lhe conte o resto ou já está a adivinhar? Não? Pois não, claro que não, quem ia pensar que algum dia podia acontecer uma coisa destas cá no prédio?

Bem, voltando à Muda que era o centro das atenções naquela manhã. Lá conseguiu explicar o que tinha acontecido e era nem mais nem menos do que um crime passional. Pelos vistos o Eduardinho, paz à sua alma, era muito amigo de outros jovens e dum em especial. Parece que volta e meia não queria saber do Gustavinho e ala pró passeio com esse outro amigo. Numa noite o Gustavinho estava ali do outro lado da estrada e viu-os entrar cá em casa muitos juntinhos. Olhe, começou a chorar segundo consta. E sabe a menina porque é que se consta alguma coisa? Porque a Muda estava discretamente mais ao fundo da rua a anotar tudo com o seu olho clínico. O Eduardinho tinha um amante e o Gustavinho parece que sofria com isso. Até diz que uma noite a Muda deu com o rapaz deitado nas escadas a chorar baba e ranho e também uma quantidade considerável de álcool. Deixe lá isso, gesticulou a Muda enquanto lhe punha a mão no ombro. A senhora não percebe, terá respondido o Gustavinho. Sei bem o que é ser traída, rematou a muda com um olhar compreensivo enquanto fazia aquele gesto bem elucidativo com a mão em que apenas os dedos indicador e mindinho se mantêm hirtos. O Gustavinho lá se terá levantado, agradecido com um abraço e ido para sua casa. Isto diz a Muda que aconteceu uma semana antes da discussão. Ora, o moço não aguentou mais, lá remoeu naquilo e resolveu cortar o mal pela raiz: atingiu o namorado com cinco jarrões de vidro na cabeça e o outro lá se ficou pelos estilhaços.

Quando acabou de contar toda a verdade sobre aquele homicídio passional, a Muda, toda ela esplendor, inchava de orgulho! Finalmente o seu dia de glória! Anos e anos a vigiar a vida dos outros para agora ter o merecido reconhecimento! Sim, só ela era a detentora da verdade, só ela sabia os motivos que conduziram àquela desgraça e, mais importante, só ela viu o principal suspeito abandonar a cena do crime.

domingo, 20 de abril de 2008

Direitos Assertivos de cada pessoa


1. Algumas vezes temos direito a ser @s primeiros (não é ser egoísta, é dar prioridade às próprias necessidades).

2. Temos direito a cometer erros.

3. Temos direito a ser juízes últimos dos nossos sentimentos e aceitá-los como válidos. Temos a última palavra no que concerne a nós.

4. Temos direito a ter opiniões próprias e convicções. Não é obrigatório guardar as opiniões para si próprio.

5. Temos direito a mudar de ideia ou linha de actuação. Não é necessário ter sempre lógica ou ser consistente.

6. Temos direito à crítica e a protestar por um tratamento injusto.

7. Temos direito a interromper para pedir um esclarecimento.

8. Temos direito a tentar uma mudança.

9. Temos direito a pedir ajuda ou apoio emocional.

10. Temos direito a sentir e a expressar a dor.

11. Temos direito a ignorar os conselhos dos demais.

12. Temos direito a receber reconhecimento formal por um trabalho bem feito. Não há que ser humilde perante um trabalho bem feito.

13. Temos direito a dizer NÃO e a aceitar o NÃO das outras pessoas.

14. Temos direito a estar sozinh@s ainda que @s demais desejem a nossa companhia. Isto não é ser anti-social.

15. Temos direito a não nos justificarmos perantes @s demais. Não é certo que haja sempre uma razão para o que se sente ou o que se faz.

16. Temos direito a não nos responsabilizarmos por um problema d@s demais. Perante um problema alheio não temos de ajudar por sistema.

17. Temos direito a não nos anteciparmos às necessidades e aos desejos d@s demais.

18. Temos direito a responder ou a não o fazer.

19. Temos direito a ser felizes.

20. Temos direito a não ser assertivos.


Adaptação da Asociación Lilith (Fonte: Guia de Educación Integral Sexual para Jóvenes, CJA, 93)

sexta-feira, 18 de abril de 2008

A Muda: Chapter II

Dá-se aqui continuidade à história dessa caricata muda que, de repente, se vê envolvida num caso de homicídio.
Perdida nestas lembranças fui abanada pelo toque rouco e frio da campainha. Era o vizinho do 4º andar. Como está, passou bem? Se já tinha ouvido a novidade, pois, apanhou toda a gente desprevenida, vinha só contar-lhe porque a menina anda sempre lá por fora. Chegou ontem, não foi? Pareceu-me vê-la com as malas.
Sentado no sofá, o meu vizinho pediu licença para acender o habitual cachimbo. É que para lhe contar a história devidamente só acompanhado de uns bafos bem puxados. Aceso o dito, o sr. Miguel vestiu a sua expressão mais romanesca, arregalou bem os olhos, papalmente abriu os braços e deu início ao relato.
Bem, isto da Muda já não é de agora. Começou tudo com aquela zaragata no 5º andar. Conhece os jovens? De verdade que nunca os viu? As mulheres cá do prédio têm a mania de se juntar à entrada e discutir a… bem, como é que hei-de dizer? O que elas dizem, menina, é que eles são amaricados, sabe? Eu não sei se quero acreditar. Um homem ama uma mulher e não se fala mais nisso! Mas elas… olhe que não senhor Miguel Ângelo, olhe que o senhor não está a enxergar direito. Os meninos do 5º são assim muito delicadinhos, sempre com bons modos. Ah, e o que eles sabem de cozinha? Eles é que preparam almoço e jantar todos os dias, até disse a D. Henriqueta. Andam sempre juntos, não se vê mulheres aqui. Aquilo é o que eles dizem agora que é homossexual, entende? Bem, menina, não sei se me está a perceber mas eu de momento não consigo pôr noutros termos.
Sim sim, murmurei curiosa. E depois, senhor Miguel Ângelo? Como é que a Muda está metida na história dos homossexuais? Então, nesse dia em que lhe falava, há uns mesitos, talvez não vá para mais de três ou quatro, ouviu-se uma grande discussão: pratos a cair, murros na parede, uma gritaria! Nós, os vizinhos, fomo-nos juntando nas escadas entre o 4º e o 5º andar muito coladinhos à parede a ouvir. Lá dentro parecia o fim do mundo! Ouvíamos palavrões a fio, filho deste e daquele, uma confusão de armários a cair, muitos vidros a partir e depois… silêncio! Mas um silêncio, menina, daqueles pesados, olhe, só me conseguia lembrar dos filmes do Hitchcock, sabe? Nisto, uns passos apressados em direcção à porta, nós a ver que vinha aí gente e que nos ia apanhar naqueles preparos. Quisemos fugir mas acabámos por nos atropelar uns nos outros e até fomos atraiçoados por alguns degraus. Só a Muda conseguiu permanecer de pé e atenta. Só ela viu tudo. O que viu? Olhe, menina, um desses jovens a sair do apartamento todo desvairado com os cabelos colados à testa e um ar muito esgazeado. Diz que chamou o elevador e enquanto este não chegava ia murmurando impropérios enquanto fitava a biqueira do sapato. Desapareceu. No dia seguinte a Dona Aninhas foi lá fazer a limpeza. Quando a pobre mulher viu o cadáver do jovem estendido na cozinha desata num ai-jesus desesperado, berra por este e aquele santo, diz que em setenta e três anos de vida nunca tal viu. Tinha sido um homicídio, menina!
Veio logo a Judiciária e quis falar com todos cá do prédio. Também eu lá fui e disse tudo o que sabia. Que me parecia gente séria, queixas nenhumas, não me ocorre sequer uma única vez que tenham feito barulho depois das 22h… nada a declarar! A Muda também foi ouvida e durante muito tempo. A Ritinha até comentou “Caramba, a bófia não larga a Muda!”
No fim dos inquéritos, a Judiciária agradeceu e disse que o homem estava a monte. Monte? Qual monte?, perguntei eu. Só se for no Picoto! Não, não, senhor Miguel, a monte quer dizer fugido. É um fugitivo procurado pela polícia!

quarta-feira, 16 de abril de 2008

"O emigrante" gentilmente cedido pela D. Maria Luísa

Para quem mora no Plateau, Cidade da Praia, e tem o costume de frequentar o Café Sofia, a janela da Dona Maria Luísa não passa despercebida. Ali se debruça no seu parapeito a gentil e simpática senhora que saúda quase toda a gente com um amistoso "Então, como tem passado?". Hoje tinha um mimo para mim, um mimo que me ficou a esvoaçar na alma. O autor é Carlos R. Borges e diz a D. Maria Luísa que mora ali perto. Ilustre desconhecido ou não, passou para o papel estas palavras tão simples quão profundas e caras. Regina, Bruno, Luigi, irmãos espalhados pelo mundo. Para mim e para vocês.

O Emigrante
A alma do emigrado
é uma alma repartida:
Parte prende-se ao passado
e a outra... à nova vida.
Saibam que os emigrantes
emigram por necessidade;
passam horas lacrimantes
horas de grande saudade.
Há quem diga à partida:
nunca mais quero cá vir!
mas a sua alma despida
volta cá para se vestir.
A alma do emigrante
não repousa no cabeçal;
hoje está lá bem distante
amanhã voa à terra natal.
Triste a terra que viu nascer
tantos e tantos emigrantes
para afinal irem morrer
a terras muito distantes.
Tristes aqueles que dão vida
a filhos para embarcarem;
ficam com a sua alma partida
à espera deles voltarem.
Quando cá se volta de visita
compartilha-se muita alegria;
mas chega o dia da partida
e tristeza é a ordem deste dia.
Regressar à terra amada
dá-nos vida sem medida.
Há muita alegria à chegada
e tanta tristeza à despedida.
Quem cá pode fazer vida
nunca pense em emigrar
porque o custo da despedida
é causa para muito chorar.
Carlos R. Borges

segunda-feira, 14 de abril de 2008

Uma vénia à "Última Ceia" do Mindelo


Deu-se a conhecer ontem à Cidade da Praia, pouco habituada a manifestações artísticas deste calibre no âmbito do teatro, a "Última Ceia", uma adaptação do romance Apocalipse Nau, de Rui Zink pelo Grupo de Teatro do CCPM / ICA.

Arlindo Rocha, Elisabete Gonçalves, Elísio Leite, João Branco, Manuel Estêvão e Sílvia Lima deram voz, corpo e fundamentalmente alma a uma trama peculiar que se desenrola no limiar do milénio passado sob a alçada de Demónio, Diabo ou Satanás, como preferirem. Sob a alçada das forças do mal. Zink já nos tinha habituado ao seu estilo cómico, sarcástico e único em Hotel Lusitano, Os Surfistas (primeiro e-book português) e Dádiva Divina, romances publicados em 1987, 2001 e 2005 respectivamente, e também nas suas colecções de contos de que Homens-Aranhas (1994) é, a meu ver, o maior exemplo. Não será portanto novidade depararmo-nos com um Diabo tão eloquente e graciosamente cínico. A adaptação deste texto à realidade cabo-verdiana (à mindelense?) foi extremamente bem conseguida pela exploração atenta do caricato, da linguagem coloquial e das situações criadas, sobretudo a que envolve o triângulo amoroso Jorge, Helena e Vítor. Fiquei com vontade de ver mais, de seguir de perto o trabalho deste grupo que era para mim, até ontem, desconhecido.

Assim, queria deixar aqui a minha homenagem ao Grupo de Teatro do Centro Cultural Português do Mindelo, gritar BRAVO a alto e bom som e aplaudir, mas desta vez de pé... como todos os artistas devem ser saudados!

sexta-feira, 11 de abril de 2008

A Muda - História de uma Alcoviteira

Dá-se aqui a conhecer uma história de gaveta. Serve a minhokinha para a publicar em folhetins e assim espicaçar a curiosidade do caríssimo leitor. De como uma simples e eloquente muda se tornou pivot em horário nobre do espaço informativo português. De como um país insiste em ceder à vulgaridade. Olhemo-nos e reconheçamo-nos.
"Notícia de última hora: senhora dona Almerinda, sessenta e dois anos de idade, doméstica e surda-muda desde nascença é a nova pivot da TVI. A estação de televisão de Queluz orgulha-se de ultrapassar barreiras e preconceitos sociais e desta forma…”
O resto da notícia já não consegui ouvir. A voz do locutor da TSF foi ficando cada vez mais ténue, pequena, até desaparecer por completo no túnel das cogitações. Evaporei-me de mim e deixei para trás a pele e os ossos. Não conseguia acreditar que a minha vizinha do rés-do-chão fosse a nova cara do serviço noticioso da TVI relegando para segundo plano Júlio Magalhães, o homem que há anos faz daquela a sua casa. Sentei-me no cadeirão. Aliás, se não me tivesse sentado naquele segundo, certamente teria caído. As rótulas fraquejavam, não compreendiam que mundo é este. Então agora é uma muda que vai apresentar as notícias do país e do mundo diariamente? Haverá algum nexo nisto? E José Eduardo Moniz? Todo orgulhoso e confiante confirma o matutino deste dia. O director da estação considera esta contratação a decisão mais acertada dos últimos anos. Então e as reportagens-choque, senhor director? Não lhe parece que esse terá sido o maior préstimo da sua estação à comunidade? Bem, responde a peitaça inchada, as reportagens-choque foram só o início de uma longa escalada, chame-lhe o aquecimento ou o warm-up se preferir. Agora com a senhora dona Almerinda à frente do Telejornal finalmente colocamo-nos na vanguarda do profissionalismo e da eficácia. Neste momento sinto um grande orgulho em comandar os destinos desta estação.
Boquiaberta, e sem conseguir articular um único pensamento, procurei concentrar-me na vizinha, afinal conhecia-a desde sempre, habituei-me à sua presença constante no hall do prédio. Hoje esta mulher era outra: é a mulher que ultrapassou a Floribela em notoriedade! Capacidades comunicativas, em abono da verdade, nunca lhe faltaram. Se o Criador lhe tirou o pio, guarneceu-a de técnicas de expressão de qualidade deveras elevada. Não, não me refiro apenas à linguagem gestual. Isso já se sabe: quem não fala gesticula e mesmo sem um diploma em comunicação lá se desembaraça. Mas a Muda (nome pelo qual toda a gente a conhece no prédio por completa e acomodada ignorância do verdadeiro) não gesticula apenas, a Muda conversa mas sem palavras. Vemos imediatamente se está bem disposta ou preocupada, cansada ou orgulhosa dos netinhos recém-nascidos. Estes atributos variam consoante o dia. O único que impreterivelmente se mantém é a curiosidade, aliás, a acérrima curiosidade. Bem, na verdade, uma saliente veia intriguista é o que caracteriza esta senhora.
Mulher para o seu metro e cinquenta e cinco, cabelo curto puxado para trás, tem aquele penteado que lembra as actrizes dos psicadélicos anos setenta. Veste discretamente e acompanha-a quase sempre uma carteira estilo malinha de casamento que confortavelmente deposita na axila. Se não está na porta do prédio está no passeio, mais metro atrás ou mais metro à frente. Sabe sempre tudo, quem entra, com quem e quando sai. Lembro-me de pensar que a muda certamente elaboraria uma lista às escondidas onde registava religiosamente cada movimento dos habitantes do prédio número 49. 4h25 da madrugada: entrada suspeita de Susana acompanhada de um mancebo barbudo desconhecido… Enfim, isto é só um exemplo dos muitos que foram povoando a minha fértil e delicada imaginação quando era confrontada com a sapiência daquela mulher. “A senhora do 2º andar não está. Saiu com aquele cavalheiro que fuma mas não é o seu marido.” Isto dizia a Muda com apenas alguns gestos: elimina três dedos de uma mão deixando apenas dois à vista e bem esticados, o indicador e o médio; passa de imediato para um corte incisivo do ar estático com a palma da mão virada para baixo; aponta a porta de saída e simula um cigarro na boca finalizando com o destaque da sua própria aliança enquanto abana negativamente a cabeça. E está dito! Já se sabe o que foi feito da dona Alzira.

Dez anos sem Cardoso Pires


Definitivamente a literatura portuguesa está mais pobre. Surgem amiúde novos talentos mas nenhum (ou poucos, muito poucos) com a garra e a pena destemida de José Cardoso Pires. Muito publicou, inúmeros caminhos literários desbravou. Desde 1998 ficou o silêncio. Um silêncio incómodo, revoltante.

Num grito acutilante, severo e escancarado, para que todo o mundo oiça, o seu auto-retrato: Cardoso Pires por Cardoso Pires:


Aos cinquenta anos dei por mim a fumar ao espelho e a perguntar E agora, José? Fumar ao espelho, qualquer José sabe isso, é confrontarmo-nos com o nosso rosto mais quotidiano e mais pensado. Por trás, em fundo, tem-se um cenário do presente imediato (a porta do quarto, um cabide vazio) mas esse presente, logo à segunda fumaça já é passado (a porta desfez-se, o cabide voou) e tanto mais passado quanto mais mergulhamos no cigarro. O olhar envelheceu, foi o que foi.
E então, por mais que a gente diga que não, começam a aparecer as pegadas históricas do Dinossauro que nos andou a foder a vida durante cinquenta anos. Adivinhamo-las à superfície do vidro, são manchas fósseis, gretadas, então não se vê logo?, e, escuta à distância, ouve-se o carrossel do medo. Aqui e ali vão-se levantando farrapos do muito que em nós se adiou e do muito que em nós se morreu, e nalguns casos podemos até distinguir o traço de liberdade que abrimos com os nossos livros nessa desolação prolongada. Pronto, estamos feitos, José. De agora em diante começa o rememorar, devias saber. Certo, cinquentas... muito ano. Muito silêncio, muita humilhação. Mas diz-me, espelho, vale a pena recordá-los? A que propósito agora esse arranhar de ferida, essa recriminação?
José, no espelho, encolhe os ombros. É como se não me ouvisse, como se não se ouvisse, nada a fazer.
No espelho os olhos só se vêem reflectidos noutras coisas, segreda-me por cima do ombro o honorável William Shakespeare a páginas tantas (e com franqueza, deitam um bafo podre, estas palavras). Mas nem assim, José continua na dele. José é José, suspeita que o querem despir do passado para que fique incapaz de o reconhecer quando lho puserem pela frente na primeira oportunidade. E defende-se, não desarma. Daqui a pouco está com certeza a citar Santayana (não me admirava nada) e a sublinhar desgraças. Revê exemplos, concita mortos porque (palavras de Santayana, eu não dizia?) «quem esquece o passado arrisca-se a vivê-lo outra vez» e ao chegar a este ponto não adianta mais. Disse. Ou melhor, eu disse.
Mas fumar ao espelho não é só ver para trás olhando de frente. É também um modo-josé de futurar, para lá do rosto que o repete e que fumega. E aí, deixa que te diga, o pessimismo ... que nos lixa. Porquê? Ah bom, porque... uma dor de colhões, não te rias. Absolutamente. O pessimismo, se não sabes ficas a saber, sempre teve a ver com carências afectavas. Daí que ele seja incómodo por natureza. Incómodo para o próprio que, sabe Deus, tem de viver toda a vida com essa dor, esse nó, e incómodo para a Pátria que já mandou para o Camões todos os Velhos do Restelo que lhe andavam a dar azar. Isto - por um lado, aquele a que podemos chamar Da Saúde Nacional. Mas há o outro, o da superstição. Absolutamente. O pessimismo acaba sempre por funcionar como uma superstição de prudência: prevê o pior para ir acumulando resistências contra o mau mas sempre na esperança de que o mau nunca venha a acontecer. E se acontecer, percebes, também já não perde tudo, ganhou pelo menos a glória da razão. Uma superstição pela negativa ou por efeito contrário, dirá algum, mas muitas ... realmente nesse jogo a dois gumes que acaba o austero pessimismo. Que horas serão isto?
Horas? Nos colóquios de espelho nunca é tarde nem é cedo nem hora certa sequer, quem me ensinou isto foi o reverendo Lewis Carrol que tinha a mania dos vidrinhos às cores. Se calhar ... Por isso que estes exercícios, se a gente não tiver cuidado, acabam num ritual que não interessa nem ao Menino Jesus. Um ritual, José, onde o padecente, em vez de incenso se esfumaça em nicotina. Em vez de incenso, tabaco, em vez de hossanas, Provocações, e às duas por três, se a gente não mete travões, esta coisa, este frente-frente, acaba numa auto- contemplação. Ou numa autoflagelação, para o caso tanto faz. Porque aqui tudo se passa entre o indivíduo e as suas imagens e, curiosamente, numa conversa muda que sabe tanto a círculo vicioso como este cigarro que eu tenho nos dedos. Fumo-o e ele fuma-me, estás a ver?
Fumar ao espelho, solidão dobrada - diria o meu irmão se aqui estivesse (mas não está, morreu aos vinte e um anos num avião militar), ele que, sem cigarro e sem espelho, acabou por conhecer a mais estranha e a mais ampla solidão que se pode conhecer. A do espaço final, vê tu. A da imensidão azul onde a morte o foi procurar, 3500 pés acima do planeta dos homens.
Não, nisto de alguém se interrogar ao espelho, olhos nos olhos, é consoante. Tem muitos ângulos - e tu estás aí, que não me deixas mentir. Vários ângulos. Há quem procure, santa inocência, fazer um discurso de silêncio capaz de estilhaçar o vidro e há quem espere receber, por reflexo da própria imagem, algum calor animal que desconhece. Seja como for, o que dói, e assusta, e é triste e desastradamente cómico neste exercício, é o pleonasmo de si mesma em que a pessoa se transforma. Repete-se. Se bem que com feroz independência (todo o seu esforço é esse) repete-se em imagens controversas que a possam explicar.
Quanto à solidão de há pouco não há pleonasmo nem desdobramento que a salve nem mesmo os psicanalistas que temos cofres cheios dela. Para o vulgar contribuinte, a solidão resume-se a um vocábulo lamentoso ou a um fatalismo social de crédito comprovado, mas em boa verdade talvez não passe de uma metáfora do medo, simplesmente. Seja ela o que for, peço desculpa mas sem solidão ninguém vive. Solitário, não vamos mais longe, é este escritor que aqui está quando se entrega ao acto de escrever. Quer ele queira, quer não, só assim pode cumprir linha a linha a sua escrita na qualidade simultânea de autor e de leitor que são duas figuras distintas da Utopia de si mesmo. E depois? Há algum mal nisso?
De modo que fuma, José, deixa correr. Solidões, duplicações, masturbações, é tudo conversa ou pouco menos. Queimam os dedos, reduzem-nos a fibras secas se nos deixamos arrastar por elas. Concreto, concreto, só esse alguém que nos vigia, que te vigia, aí no espelho, e que nos escuta por dentro. Mas escutar, realmente? Para te ser sincero, ainda não percebi. Ainda não sei se... por arrogância, se por desconfiança que ele nos encara com tanta dureza.
Somos três agora. (Sempre fomos, tu é que não reparaste: dois que se olham e um terceiro que os escreve, olhando-se). No entanto, o rosto que nos é comum aos três está devastado pelo tempo. Esse aí não tarda muito que lhe caiam os dentes e fique coberto de rugas a bulir de vermes. Duvidas? Então espera por mais dois ou três outonos de cigarros e já vais ver. Três outonos, não lhe dou mais. Até lá vai continuar assim, em aresta viva, e com a tal contensão que, não sendo arrogância nem suspeita, ser o quê? Orgulho?
Não, orgulho, nem pensar. E se fosse, pior para ele que se calhar pouco fez para mudar o mundo e muito para não se deixar mudar. Aceitemos que é, antes, um endurecimento defensivo, para aí, sim. E aguardemos. O resto, Deus o dirá, se alguma vez o souber ler devidamente.
Tudo isto, já te disse, tem de ser encarado a vários ângulos. Sempre a vários ângulos, não te esqueças, porque, segundo alguns, os personagens deste tipo são de visagem errante. Como toda a gente? Como toda a gente, possível. Só que esse que tens diante de ti nunca na vida soube administrar a sua ima em pública, como se pode depreender logo à primeira abordagem. Porquê, não se sabe; as razões podem ser muitas. Pudor, impaciência, falta de traquejo, sei lá. Há também a independência, a independência... demasiado impeditiva, sempre foi, mas por essa ou por outras razões, a verdade é que esse talento nunca ele teve. E não se julgue que a lacuna não é grave porque a imagem de marca que os corretores das Letras e os lobbies da Opinião põem a circular no mercado a cotações de estarrecer. Ah, os lobbies, ah, os lobbies. Ah, perfumadas sacristias onde o livro em branco, antes de ser livro, já foi condenado ou marcado com uma pétala seca na página da eternidade.
Uma vez mais, silêncio, José mantém-se olhos nos olhos. Parece desconhecer que em qualquer álbum de glórias o verdadeiro retrato do paciente pode ser desfigurado com a mesma facilidade com que o fumo do cigarro o encobre ali no espelho. Nesse caso que se lixe e cara alegre, então não é?
Deixemo-lo portanto assim. Em directo e ao natural. Como se vê, tem o cabelo mais branco neste momento mas mantém a vislumbrada malícia de si mesmo que sempre se lhe conheceu. Pelo menos... o que eu penso - ou, antes, o que ele pensa. Vez por outra nota-se-lhe um perpassar de ironia pelo olhar, mas se o tem... luz breve e em geral magoada, não dá sequer para temperar o desalinho aparente que há nele e que provém mais de uma certa Lisboa à balda do que propriamente de outra coisa.
Quanto ao mais, pouco a acrescentar. Visagem martelada (já se disse), máscara prevenida, assimetrias de quem se talhou ao azar - e é tudo.
Ah, e os cigarros! Em 1990, este autor ainda continua a fumar, imagine-se, e a perguntar todos os dias E agora, José. A cada interrogação aspira, fundo e lento, até o morrão do cigarro abrir brasa no vidro do espelho, e há alturas em que encolhe os ombros e pensa de alto «Acta est fabula», se assim me posso exprimir em sinal de despedida.
Mas é um dizer por dizer, nada de especial. Quando menos se esperar, ele aí estará outra vez nesta cadeira e neste lugar, a fazer resumo e projecto de si mesmo, e diga-se de passagem que não se dá mal assim. Como sempre, não tem angústia nem surpresa porque vai encontrar alguém que amanhã, dia comum, recomeça de novo a vida na primeira linha do capítulo que se segue.
Aqui tens, José, o homem que te interroga. Que te fuma e te duvida. Que te acredita.
E com esta me despeço, adeus até outro dia, e que a terra nos seja leve por muitos anos e bons neste lugar e nesta companhia.
Pá, apaga-me essas rugas. Riscam o espelho, não vês?


Cardoso Pires por Cardoso Pires, entrev. de Artur Portela, 1ª edição, Publicações D. Quixote, 1991

Deus? Luxúria?

"Onde estáveis, quando Ele criou criou as fêmeas e os machos e lhes deu cada centelha de desejo cego um pelo outro e lhes deu como misturar-se livremente uns com os outros? Onde estáveis, quando Ele criou todos os mistérios que levam ao Desejo e à tesão e tornam sublimes os abraços? Onde estáveis, quando ele criou as ânsias imortais que agora forcejais por sacrilegamente abafar e matar? Onde estais, depois que Ele vos deu o poder do prazer inocente e agora cuspis nesse poder e pretendeis que vossas palavras valham mais do que as d' Ele?
Eu não sou a voz de Satanás, Satanás odeia a Luxúria. (...) Eu sou a voz de Deus, sou uma das vozes de Deus, e não estou maluca. Ou por outra, posso estar como qualquer um pode estar, o que faz com que a palavra perca o sentido."

A Casa dos Budas Ditosos, João Ubaldo Ribeiro

segunda-feira, 7 de abril de 2008

Para pensar...

Vale a pena viver porque o mundo, apesar de tudo, apesar de todos os seus problemas, é um dom extraordinário: a água, a luz e o vento, o amor, as flores... E eu também creio que fomos criados para uma vida eterna. O dom de ter nascido é um dom fundamental.

Sophia de Mello Breyner